O escritor e
desenhista HUGO PRATT tem, em Corto
Maltese, a personagem dos sonhos de qualquer leitor que goste de aventuras.
Nascido Ugo Eugenio Prat, na praia do Lido, perto de Rimini (Itália), em 15 de
junho de 1927, ele morou na África Oriental em 1941 e, com a eclosão da Segunda
Guerra Mundial foi levado para um campo de concentração na Etiópia (Dire Dawa),
onde o pai, o militar Rolando Pratt, morreu – o desenhista só saiu de lá por
intervenção da Cruz Vermelha, em 1943; anos mais tarde, o campo de prisioneiros
apareceria na série Os Escorpiões do Deserto, histórias de
guerra no norte da África entre 1940 e 1941. Envolveu-se, como muitos, com o
conflito, e chegou a ingressar no Batalhão Lupo da Decima Flottiglia, mas
desertou para não ser fuzilado pelas tropas alemãs da SS acusado de espião
sul-africano. Em 1945 serviu de intérprete para as tropas aliadas e organizou
espetáculos em favor da coligação vencedora.
Naquele ano,
encontrou-se com o desenhista Mario Faustinelli (1924-2006) e deu início à sua
história nas histórias em quadrinhos, ao integrar-se ao “grupo de Veneza”, cidade
onde morava, e tornar-se “um dos autores mais seminais que jamais emergiram nas
HQs, a partir do formato de HQ de aventura” (PATATI; BRAGA, 2006, p. 122). Dele
ainda faziam parte o jornalista Alberto Ongaro (1925-2018), Paul Campani (1923-)
e Dino Battaglia (1923-1983), entre outros; com Faustinelli e Ongaro (que
tornou Pratt protagonista em Um romance
de aventura, 1970) fundou a revista Albi
Uragano – a revista mudaria de nome duas vezes e contaria com a presença de
Battaglia, Rinaldo D’Ami (1923-1979) e Giorgio Bellavitis (1926-2009), entre
outros. O personagem Asso di Picche (criada em 1945), que deu nome às duas
últimas fase da revista, tornou-se sucesso na Argentina. E daí a história de
Pratt tomou novo rumo, bem ao gosto de Corto Maltese...
Leitor de romances do
escritor (e dentista) Zane Grey (1872-1939) e de histórias em quadrinhos de
Will Eisner (1927-2005) e Milton Caniff (1907-1989), de quem recebeu forte
influência, recebeu o convite para trabalhar na Argentina em 1949. Até 1962,
quando retornou para a Itália, criou diferentes personagens para séries: com
argumento de Ongaro, Junglemen; com o
roteirista Héctor Germán Oesterheld (1919-1977), vieram Sgt. Kirk (o sargento do 7º Regimento de Cavalaria dos Estados
Unidos no Velho Oeste), Ticonderoga Flint
(um órfão adolescente no século XVIII, fiel ao rei Jorge II) e Ernie Pike (jornalista inspirado num
repórter da Segunda Guerra Mundial). A personagem tem o rosto inspirado em
Oesterheld, um dos mais importantes escritores de HQs de todos os tempos; em
parceria com Solano López, foi o criador de El
Eternauta, astronauta do tempo que conta a história da invasão da Argentina
por extraterrestres, e o que mais influenciou Pratt em sua carreira – admirador
do novelista, escritor e poeta Robert Louis Stevenson (1850-1894), Jorge Luís
Borges e Jack London, Pratt encontrou em Oesterheld um fanático por Joseph
Conrad e Herman Melville e, juntos, encontraram o ponto certo para construírem
histórias maravilhosas. Como intelectual de esquerda, contrário ao governo da
época, Oesterheld “desapareceu para sempre, vítima do odioso regime militar
repressivo fascista que se instaurou na Argentina depois de 1976” (GOIDA, 1990,
p. 264); “assassinado durante a sangrenta ditadura militar argentina” e, com
ele, “desapareceram também as suas quatro filhas”, enfatiza Antônio Rodrigues1.
Já naquela época
começou a lecionar: na Argentina com o ilustrador uruguaio-argentino Alberto
Brecia (1919-1993), depois na Escola Panamericana de Arte de Arte e Design
(fundada em 1963), no Brasil, sob a direção do artista plástico Enrique
Lipszyc. No Brasil viaja pela Amazônia e Mato Grosso, enquanto produzia Ana da Selva, sua primeira história
completa em quatro partes, que será seguida por Capitan Cormorant – gênese de Corto Maltese, com todos os
ingredientes: piratas, canibais e tesouros nos mares do Sul – e Wheeling – inspirada nos romances de
Grey e Kenneth Roberts (1885-1957), em que narra o início da colonização do que
viria ser a América do Norte (PATATI; BRAGA, 2006).
Retornou à Itália em
1962 (embora antes tenha tentado estabelecer-se, sem sucesso, na Inglaterra e
nos Estados Unidos). No país natal colabora com Il Corriere dei Piccoli, para o qual verte romances juvenis do
novelista, escritor e poeta Robert Louis Stevenson (1850-1894) para os
quadrinhos. Em 1967, depois de conhecer o empresário Florenzo Ivaldi, lança a
revista mensal Sgt. Kirk – e compra
briga com Oesterheld, pois assume a autoria total da personagem – onde aparecem
as primeiras páginas de A Balada do Mar
Salgado (escolhido como um dos 100 mais importantes livros do século XX
pelo jornal francês Le Monde), com
Corto Maltese ainda como personagem secundária. Mas, logo, o 1,83m do
aventureiro de “olhar perdido no horizonte e o cigarro aceso nos lábios”,
ganhou evidência. “Se calhar foi porque nasceu num momento
particular, nasceu em 1967, antes da grande contestação juvenil de 1968. Toda a
gente necessitava de uma certa busca da liberdade, de contestar a cultura
oficial, de querer mudanças, e Corto Maltese tinha nele algo de liberdade que
fazia sonhar as pessoas.”2
De acordo com Patati
e Braga, A Balada do Mar Salgado,
“saudada por estabelecer um novo nível de qualidade de texto e um novo nível de
expressividade dos desenhos” (2006, p. 125), só é superada por O Homem do Cangaço, em que Pratt se
dedica ao texto e entrega os desenhos para o amigo Milo Manara; o resultado é “um
de seus trabalhos mais aclamados” (2006, p. 126). Extemporâneos, autor e obra,
assim define Claudio Bertieri na apresentação do livro publicado pela L&PM
em 1983: “O fascínio maior da Balada
reside, justamente, nessa possibilidade de ir além do itinerário do
acontecimento, das histórias particulares de tantos personagens, dos limites de
tempo e de lugar que a determinam, de uma forma ou de outra. Tudo está
definido, preciso, ‘documentado’ mas, ao mesmo tempo, tudo resulta fugidio,
ambíguo, impalpável.”
Nos primeiros anos do
retorno à Itália, voltou a ler os filósofos socialistas Karl Marx, Friedrich Engels
e Herbert Marcuse; “Subitamente vejo-me acusado de infantilismo, hedonismo e
fascismo”, disse mais tarde. Foi despedido pelo editor da revista francesa Pif Gadget, que o considerou
“libertário” demais. Talvez por conseguir, com êxito, o enquadramento histórico
correto e harmonizar as aventuras entre os personagens reais e os personagens
fictícios. Em 1974, depois de conhecer Lele Vianello, começa a desenhar Corto Maltese na Sibéria, quando faz a
primeira alteração estilística em direção à simplificação; as histórias de
Corto Maltese passam a ser apresentadas em formato de novelas gráficas mais ou
menos longas; algumas delas tornam clássicos das HQs. As aventuras de Corto
Maltese estão situadas entre os anos 1910 e 1920, mas a fama do aventureiro dos
mares do Sul só começou a partir dos anos 80, quando a maior parte de sua obra
passou a ser reeditada em vários países.
Milo
Manara, amigo e discípulo de Pratt (que, com Guido Crepax formam o “trio de
ouro dos quadrinhistas italianos”, segundo Goida), desenhou-o como um dos
protagonistas da sua série H.P. & Giuseppe
Bergman. Com Manara, Pratt desenharia dois álbuns: Verão Índio (1983)
e El Gaucho (1991) – este último, num regresso argentino,
mistura as mulheres de Manara com a aventura de Pratt e um episódio real no
tempo de Napoleão, quando a Inglaterra enviou tropas para sitiar Buenos Aires3.
Em 2005, a filha de
Pratt encontrou 13 tiras com diálogos recém começados que são transformados na
continuação da Juventude de Corto. Em
2006, a Pixel editou Sempre um pouco mais
distante, que se passa na floresta amazônica em 1923, por onde Corto andou,
aventuras publicadas na revista francesa PIF
entre novembro de 1970 e julho de 1971 (o convite, feito pelo editor George
Rieu se estendeu até 1973). O volume, em cuidadosa edição, conta com uma
entrevista feita por Claude Moliterni para a revista francesa Phenix (sem “o”) em 1970 e uma
entrevista com o cineasta brasileiro Hector Babenco, por Rodrigo Fonseca. Mas
como tudo chega ao fim, no dia 20 de agosto de 1995, na Suíça, morre Hugo
Pratt, não sem antes ser reconhecido como um dos mais importantes autores de
histórias em quadrinhos, dono de um estilo essencial e expressivo, mas sem ver
a saga do romântico marinheiro com a argola na orelha, vivendo situações
místicas em tom nostálgico e poético, ou cercado de belas mulheres, tornar-se
personagem de uma série de filmes de animação. Babenco (Pixote, a Lei do Mais Fraco, de 1980, entre outros) traduziu A Balada do Mar Salgado para o inglês,
mas, com a morte de Pratt, o projeto cinematográfico foi deixado de lado. “Quem
sabe um dia eu ainda retome”, disse o diretor (in FONSECA/PRATT, 2006).
Enquanto isso, dá para apreciar a caixa de DVDs, com cinco discos – A Balada do Mar Salgado; Sob o Signo do Capricórnio; As Célticas; Outras Histórias e A Casa
Dourada de Samarcanda4 –, que permitem, ainda hoje, que sejam
mantidas enfunadas as velas da imaginação.
(A partir de BERTIERI in PRATT,
1983; BABENCO in FONSECA/PRATT, 2006; GOIDA, 1990;
MOYA, 1993; PATATI, BRAGA, 2006; http://www.redeangola.info/especiais/hugo-pratt/1,2,3;
https://jornalggn.com.br/cinema/hugo-pratt-um-dos-maiores-romancistas-graficos/4)
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