entre as esquinas

uma cidade se compõe e se descompõe. diariamente. personagens encenam roteiros diversos em cenários pra lá de cotidianos, embora o olhar nunca consiga apreender o mesmo instante. desconcertante. assim se traduz a relação do indivíduo que caminha em sua rotina pelas ruas de sua cidade. na rotina as coisas escapam do olhar, os olhares se chocam mas não mergulham no desconhecido - não há tempo, não há possibilidades de interação, há medo, há descaso e um certo cansaço parece tomar conta dos músculos. mas existe salvação no caos e na dor.

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as esquinas que levam a algum lugar: todas.
as que concentram: as da júlio, as da luiz michielon, tronca, avenida itália, pinheiro, alfredo chaves, sinimbu, os 18 do forte, 13 de maio, moreira césar, avenida rossetti, as esquinas da visconde, luiz antunes, são leopoldo, rio branco, ernesto alves, bento gonçalves, doutor montaury, marquês do herval e garibaldi.

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hoje é quinta-feira, poderia ser outro dia. poderia ser domingo! e se fosse domingo, a febre industrial estaria temporariamente arrefecida, a dupla Caipirinha e Churrasquinho faria dançar muita gente, ao ritmo de um violão rachado ou um cd em alto e bom som, o mito titânico da cidade de aço temporariamente recolhido, num movimento único de expansão e dilatação, repousou e ação, nascimento e morte - dialética urbana.

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alguns prédios e esquinas: o verde da júlio com a alfredo chaves, o castelinho da sinimbu com a borges de medeiros (fotografado por giancarlo mantovani no dia em que o brasil perdeu a copa para a frança e as ruas estavam desertas),o muro da plácido de castro com pedro tomasi (palco-cenário de densas noites ao luar), a esquina e os postes da júlio com a marquês, tendo o banrisul iluminado pelos primeiros raios de sol, a 13 com a plácido de castro (quantos conversas com meu primo nas madrugadas frias!), a da bento com a 13, da tronca a marechal floriano, onde um dia rodava a impressora da 'folha de hoje', a esquina da garibaldi com a bento, onde o prédio recupera a arquitetura que o banrisul impõe ao calçadão, a angelina michielon com a luiz michielon, sob a sombra veranil ou os galhos outonais do enorme plátano, o danúbio, o bigode.
as que dão saudade: o velho armazém, o tribuna bar, a tapeçaria defronte, a casa verde da família raabe, as esquinas diante da livraria do maneco e do alfred hotel, onde palmeiras centenárias sombreavam a sinimbu, a da antiga rodoviária, as da olavo bilac, as da juventus, as da dom josé barea - entre o super cesa e a 13 de maio -, os 18 do forte com visconde e com garibaldi, onde antes a vida fluía pelas madrugadas do azymuth e o pano de fundo, a esquina da júli com a andrade neves e o bar do bigode, com led zeppelin de trilha sonora, o azul e blues, o kynesis, a la gabia e sua janelinha lateral, as lojas saldanha e seu universo fantasioso, de bolinhas de gude, bonecas penduradas na vitrine, bixiguinhas e quetais, a casinha marrom da 13 com a júlio e seus incontáveis gatos e um jardim verde, os parreirais da 13 com a 18, a 13, entre a tronca e a barea, onde o carrinho de lomba encerrava seu percurso e a bola corria sob os automóveis.

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de vez em quando alguem para para pensar e pensa que, parando ali na esquina, poderia estar correndo riscos. entre eles, o próprio pensar. mas é nesta pausa que a cidade aflora, deixa de devorar, no fragmento de um instante, o coração do indivíduvo.

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as que permanecem: todas.
algumas que encantam: as do olhar, as do teu olhar.

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gosto de falar em esquinas porque, na configuração de uma cidade, na representação cênica de uma urbe, é nelas que estão contidos os elementos da surpresa os insights do encontro. é nelas que se concentram a magia das avenidas, o ir-e-vir desairado desta gente que caminha, sonha, chora, compra, vende, pinta, poetisa, blasfema, cospe, dorme nas calçadas e faz ver que tudo é relativo. até mesmo a relatividade.

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régis bonvicino, musicado por itama assumpção: 'não há saídas / não há / só ruas, viadutos, avenidas.'


crônica publicada no jornal pioneiro em 17 de junho de 1999.

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