centena de anos

"[...] Herói, poeta e mocidade são as projeções das pátrias, porque neles crepita a fogueira do ideal!
Apenas o herói tem horas de abandono e de ingratidão das raças, e a mocidade fica com ele. Apenas o poeta tem momentos de descrença e é a mocidade que o soergue com o largo riso forte que tem a divina Certeza.
Eu venho à vossa porta e clamo:
- Mocidade, o meu ceticismo é a máscara do desalento. Nunca a pátria que ides continuar desceu tão baixo. Eu tenho medo!
Lá fora, por um milhão de léguas quadradas, a estupidez rebentou em cataclismo. Há fome, há miséria e a indignidade, curvando as espinhas como barbatanas, fez da pátria uma copa colossal em que lacaios se disuptam os restos do festim destruidor do legado dos nossos ancestrais. O descaro, a covardia, o medo das responsabilidades, a inveja, a ignorância abalaram os esteios sociais. À inteligência abafa-se porque poderá mais, ao mérito não se respeita porque ninguém o compreende; a honra despedaçam-na porque a honra ultraja o vício e a função da lama é macular. Os gestos generosos são torpezas, as palavras da Beleza despautério, o pensamento, irrisão. Tudo rui, aos poucos. O país é um fandango de toupeiras que só sabem cavar e dilaceram e enfraquecem nos subsolos da terra as raízes ainda pouco profundas da nacionalidade, sem saber que dilaceram e enfraquecem. O pudor desbotou nas faces das classes e das instituições. Não há chefes. Eles são bonecos. No crânio, em vez de cérebro, há papelão molhado, o preconceito que a tudo se molda por não poder se suster só. Não há homens livres. Há escravos que traem e libertos que enganam. É o fim. É o sossobramento. A maior coragem é resistir solitário à tentação de ser infame no assalto em que roncam insultos a parodiar honra os patifes medularmente canalhas, atracados às gorduras e aos copos dos restos das orgias. [...]

Este trecho pertence à crônica Oração à mocidade, publicada no dia 17 de junho de 1911, escrita por João Paulo Coelho Barreto, também conhecido por Joe, Paulo José, Simeão, Claude, José Antônio José ou, simplesmente, João do Rio. O curioso é que, passados 101 anos, a crítica aguda é pertinente. Esta crônica encontra-se no livro João do Rio - Um dândi na Cafelândia (1ª edição, 2004), organizado por Nelson Schapochnik para o selo Paulicéia, da Boitempo Editorial, que tem como coordenador o cientista político Emir Sader.

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