coça a barba e solta a fumaça

em frente ao computador, ele hesita.
o cheiro do incenso emaranha-se na voz melíflua de chet baker, enquanto ele observa um pequeno trecho da esquina pela persiana estragada.
automóveis demarcam sua presença, em aceleradas, buzinadas e sonoridades, e fazem a poeira da rua subir até o apartamento.
em frente ao computador, ele hesita.
não é a primeira vez, mas desta vez, ele sente o gosto nauseante do fracasso tomar conta do seu corpo.
há pouco, havia acessado uma das redes sociais da qual faz parte e, de novo, a sensação de inutilidade foi avassaladora.
mensagens retardadas de fé, mantras industrializados de felicidades, posts de animaizinhos q beiram a imbecibilidade... todos chafurdados no pântano da mediocridade tecnológica de tempos espamódicos e inúteis - assim como ele.
reviu mensagens antigas em seu e-mail, revirou as prateleira atrás de um livro q contivesse o q precisava ler, já q para ouvir restava o lamento de baker - enquanto a bandeja de cds não desse lugar para os outros standards, escolhidos aleatoriamente.
encontra-se, em seu quase meio século de vida, dividido entre caminhar no passo certo da sociedade ou manter-se à margem.
'tudo tem seu preço, tudo tem seu preço', ouve paulatinamente o refrão.
sabe, tanto quanto algumas outras pessoas, q as escolhas feitas não são totalmente individuais.
joga-se o jogo e, quem blefa melhor, ganha o jogo.
reminiscências de outros momentos iguais assomam à mente, mas ele procura manter-se no presente - afinal, é para isso q toma um ansiolítico antes de dormir e outras drágeas homeopáticas em jejum ao acordar, caso contrário a ansiedade já o teria matado.
não q isso não tenha acontecido, uma, duas, dez, cem vezes ao longo desse período.
pequenas mortes disfarçadas pela 'força de vontade', por fiapos de uma fé católica imposta quando nasceu, enfim, às vezes pelo álcool, outras pela sobriedade - quem sabe, pelo amor.
cruz, credo, arrepia-se ao digitar.
já faz tempo q apaixonou-se pela última vez e esta última vez está silente em seu peito.
urso panda brincando inocentemente sem saber q é muito mais um pop-up de campanhas publicitárias para a preservação da vida do q verdadeiramente um ser vivo.
assim como ele, assim como outros iguais.
apesar de alguma atitude outsider, procurou cumprir seus compromissos, mas foi medianamente inteligente para 'chutar o balde' quando os torquemadas mostraram, sorridentes, o caminho para a felicidade.
dias desses, deu-se conta de q não era mais feliz, após deixar de viver como pretendia.
há semanas ouve q é doente, embora exames médicos e psicológicos atestem sua sanidade.
sente-se enlouquecer aos poucos, é verdade.
em frente ao computador, ele hesita.
sabe q não será capaz de escrever um poema como 'para annie', de poe.
sabe q daqui a pouco, ao fim da seleção musical e da noite, irá dormir e acordará com as dores no corpo lembrando-o q ainda está vivo.
à base de água e cigarros - o café preto reservado para as horas cinzas do dia.
e ainda é cedo e é quinta-feira e ele sabe q no fim de semana a angústia será ainda mais excruciante - um sinal de alerta do carro dos policiais o distrai por instantes.
tanto tentou se tornar invisível na multiforme multidão daquela cidade, q conseguiu.
seus telefones não tocam, a não ser para lembrar algum compromisso bancário ou algo do gênero.
sua caixa de msg é abarrotada por mensagens sem sentido - piqueniques vegetarianos, adoções de pets, retiros espirituais, conversas políticas, rasgos de indignação q se perdem na 'nuvem' - e ele aprende a deletar sem se importar.
aliás, pensa, quase nada mais importa.
deixar de escrever já é algo q não o aflige.
deixar de conviver com grupos se torna algo cada vez mais 'normal'.
sentir, já nem sabe mais o q é - fora as dores físicas q nem mais qualquer dorflex resolve!
a única coisa q ainda fomenta em seu abandono, e não consegue se desvencilhar, é de pensar.
mas até isto causa desconforto pois a cada dia, ao olhar para o recorte do back-light urbano ou, durante o dia, a árvore ensolarada, sente-se premido por urgências q nunca teve.
se sonha, pensa q viveu, se viveu, pensa q é um sonho.
e as horas passam com a mesma precisão - por isso mesmo não tem relógio visível no apartamento.
e as horas indicam q o seu tempo está chegando ao fim.
e de novo hesita, em frente ao computador.
um outro cigarro, uma outra lembrança e de novo a lambança.
pelo menos, considera, sente-se menos preso e pouco menos angustiado.
as horas de análise superaram as horas de bicho-grilice em torno de mapas astrais, futurologia, sortilégios e quebrandos, quetais...
coça a barba e solta a fumaça.
e o poema de poe volta à baila.
como era mesmo?

'Graças aos céus! A crise...
O perigo passou,
E a prolongada doença
Por fim se acabou
E essa febre chamada vida
Por fim foi subjugada.'

ao fundo, 'i love paris', de cole porter, por ella fitzgerald.
hesita, mais uma vez, e desiste.
pelo menos de continuar a escrever.

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