A propósito...

as calçadas da cidade preservam-se. sim. embora muitos cidadãos, contaminados pela "automovelcracia" (conforme o poeta Galeano, o das "janelas", na sumida revista Atenção!) queiram extingui-las, elas estão aí. testemunhas de caminhos e descaminhos, cúmplices de infindáveis trottoirs, de inocentes caminhadas, de podres cusparadas e ânsias, a calçada permanece como último reduto dos pedestres.
mesmo que as administrações tratem de diminuir-lhe a amplitude, instalando lixeiras desproporcionais ou árvores ou canteiros ou buracos intermináveis; mesmo que os comerciante insistam em ocupar-lhes com paineis, balaios, propagandistas, grades; mesmo que os carros (e são mais de 100 mil só em caxias!) se atravessem, pelas mãos de motoristas débeis, elas ali estão. símbolos do ir-e-vir, representações da poética urbana, do trânsito livre das emoções, da carnavalização das atitudes beneméritas.
os mais variados tipos ocupam as calçadas: engravatados, paraplégicos vendendo raspadinhas, adolescênicas, teens, prostitutas desocupados, aposentados, donas de casa, policiais; bêbados, profetas, malabaristas, políticos, a turma dos engraxates e a dos dissimulados. a calçada é um mostruário da tipicidade urbana, é um catálogo de aberrações, é um resumo da diversidade. e aí reside sua beleza.
a potência da unidade é a multiplicidade. a potencialização da calçada é o calçadão. tirante os preconceitos e a recusa do espontâneo, de onde podemos entender uma cidade? no volante de um automóvel, vidros fechados? do alto de um edifício, a partir de uma janela gradeada? acho brabo. muita gente repete mas poucos praticam: quando é preciso reconhecer o terreno deve-se ter a predisposição para percorrê-lo. de preferência a pé. sentindo os cheiros e os esbarrões. olhando nos olhos de quem vem e a cadência de quem vai. dando espaço para o humano. parando nas vitrines, espichando o pescoço para dentro do ambiente que se descortina ao rés da calçada.
joão do rio identificou a musa da cidade caminhando pelas avenidas, prestando atenção em sua voz. baudelaire trouxe as calçadas e a arte do flânerie para o hábitat das inquietações modernas. machado de assis entrelaçou os personagens com as ruas cariocas, assim como nelson rodrigues e mario quintana o fizeram. nós, aqui, estamos premidos, encapsulados pela vaga ideia da invidualidade como forma de preservação da espécie. ególatras, idólatras empedernidos em processo de afastamento das coisas naturais, das relações partidárias, da quantificação, clientes da exclusão. reserva-se a oportunidade de aproximação e reconhecimento  para ambientes "adequados" - mim, cara-pálida, tu, olhos vidrados. qualquer blade runner há de verter niágaras - no mínimo véus de noiva - ao revirar arquivos digitais num futuro qualquer, alternativo ou não, enquanto circula entre radiais, aneis, níveis e distritos.
sonho, assim, que o calçadão poderia começar na visconde de pelotas e estender-se até a alfredo chaves. ou ao contrário. e os teatreiros, performers, artistas plásticos de naturezas mortas, poetas, músicos de uma nota só, clowns de todas as gerações, hermanos e suas guarânias, deveriam deixar as sombras - afinal, trata-se de uma questão estratégica, de ocupação.
caxias não é vanguarda, vive quase tão-somente de tradições. mas, vamos combinar, as festas da uva da década já cumpriram o relicário de reconhecimentos. tendo ou não recursos federais, contando ou não com a maioria na câmara, a cidade precisa admitir o futuro, de dianas domingues e quem mais esteja inserido nessa modernidade ululante. é preciso sair da sombra da estátua. e tomar um sol (um sorvete, uma cerveja, um refrigerante) nas calçadas da cidade, enquanto ouve-se a sua música.

crônica publicada no jornal Pioneiro, em 3 de dezembro de 1998.
título original: à sombra do imigrante.

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