Em trânsito

Não há caminho longo sobre o selim da bicicleta ou a poltrona de um ônibus.
As mãos tornam-se desnecessárias - corpo e metal fluem sobre rodas.
Cheiro de asfalto, cheiro de esgoto, cheiro de pão, cheiro de vida.
O céu azul sobre o petróleo cinza sob os pneus - olhos de gato sinalizando caminhos, placas chamando a atenção pelo ofuscamento.
De bicicleta, para no viaduto e o sol se põe; sem tirar nem por, invariavelmente, insofismável, indiscutível, previsivelmente Belo.
De ônibus, a paisagem se transforma em quadros, emoldurados pela janela e móvel, intensamente móvel.

* * *

Logo cai o pano, na boca do palco, no teatro da vida.
A cidade volta para casa para logo mais retornar à rua.
Muito brilho, luminárias, esculturas de neón, mulheres marmóreas de Vinicius, pessoas interessantes como pessoas que são.
Quantos, daqui a alguns anos, terão eternamente a idade de hoje?

* * *

João toca violão e os amigos fazem o coro no tradicional bar da esquina.
Tradicional para aquela esquina, aqueles rostos, aquelas bocas ávidas por um gole de cachaça ou de cerveja, uma porção de amendoim ou de ovos de codorna, uma conversa amiga para amenizar o choro da falta de um ombro ou o colo para ganhar carinhos.
Futebol na tevê enquanto João toca violão.
Há promessas: de madrugada no boteco, de madrugadas sob o signo da lua cheia.

* * *

A promessa de uma noite prazerosa não diminui a ansiedade. (Pura literatura)

* * *

A vida percorre o corpo enquanto a cerveja se dilui na mente.
Um fotógrafo morreu porque preferia cultivar lírios no fígado a viver com tédio.
Haraquiri etílico: samurais e ronins cortam o vazio da noite com a lâmina súbita da honra e da beleza.

* * *

Honra: a vida não é só CPMF, talão bloqueado pelo Banco Central, FHC, ACM, OP, INSS descontado, supermercados, DDD e outras siglas, enquanto representam cultos.
Beleza: as esquinas, as pessoas as conquistas os olhares a poesia da rua, as luas, teu corpo, teu olhar e algo mais, algumas lembranças, Luiz Melodia, João Bosco cantando Corsário, reencontro entre amigos, conversas, admirar um quadro, ler.

* * *

Reflexão, vamos considerar, não parece ser nada mais do que um grande reflexo do que somos, como agimos, sentimos, amamos, enxergamos o mundo, etc.
Não é?

* * *

O tempo de um domingo poderia solidificar-se em nossa consciência.
Principalmente depois de um farto piquenique sem formigas, sobre o edredon, Nouvelle Cuisine dando a deixa para o Cheiro de Vida que por sua vez apresenta Hermeto Pascoal, que logo convida Chet Baker on poetry.
Logo será segunda-feira.
Moto-contínuo, pouco tempo para pensar melhor a respeito das coisas.
Como: quais as razões para tantas existências?
Rezar o Padre-Nosso em aramaico parecia ser a resolução de todas as dúvidas.
Engraçado reencontrar anotações antigas e perceber os estados de espírito, as animosidades, o grau de cegueira e o nível de compreensão de todas as coisas.

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Luciano Zajdsnaijder, em A travessia do pós-moderno (Gryphus, 1992): "O objetivo é prolongar a vida, protegê-la, expandi-la. Sem que se pergunte que tipo de vida é este que se pretende prolongar ou proteger."

Crônica publicada originalmente no jornal Pioneiro, dia 12 de agosto de 1999.

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