tio da casquinha

Em Um olhar sobre a cidade e outros olhares, de 1996, afirmo: “nesses bares / os lares q nunca tive”. O professor Jayme Paviani, referindo-se aos versos, encontrou a razão: “[...] uma certa ternura consigo mesmo. [...]”.



Velho conhecido

Pelas ruas da cidade, um personagem construiu outro personagem. As histórias se confundem, mas não há nada de invenção; ele é real.


O mundo estava nos estertores da Segunda Guerra Mundial em 1947 e Ruy da Silva Peres começava a circular pelas ruas de Caxias do Sul. A vender “casquinhas”, uma fórmula culinária que, desde aquele ano (ou desde 1946, ele não sabe precisar) permanece intocada e envolta em mistério. O mundo mudou, ele interagiu com o mundo ao redor.
Lá se vai mais de meio século, e o encanto continua. Talvez pela fórmula ultra-secreta dos quatro cones de massa doce acondicionados em sacos plásticos, depositados em um latão verde, já descascado e muito rodado; muito mais provavelmente pela simpatia e bom-humor do “Tio da Casquinha”, como é conhecido.
São poucas as crianças ou adultos que não o conheçam. Desde que Caxias é Caxias (digamos), alguém já comprou a tal da “casquinha”. O senhor simpático, de longas barbas brancas e de touca de Papai Noel pra lá de rota, com aparência andrajosa, o que costuma contrariar o prurido do caxiense, conquista ainda mais admiradores.
Ele não gosta de falar aos veículos de comunicação. Nega-se, e aproveita-se de sua surdez. Aliás, “se faz de louco”. Mas, em algumas conversas em outros ambientes que não o entorno das escolas da cidade, no “bordejo”, ele solta o verbo. E não demonstra preocupação quando eu anoto. Faz pilhéria. “Ah, tu sabe escrever? Ou só lê as figurinhas?” Ouve quando o convém, mas fala aos borbotões. Fala muito e, aos 77 anos, esbanja vitalidade que adolescentes não demonstram.
Conta histórias, várias histórias. Piadas ingênuas e piadas picantes intercalam depoimentos de generosidade. “Se a criança quer comer uma ‘casquinha’ e o pai ou a mãe não tem dinheiro, eu dou.” O que importa para este senhor que tem seis bisnetos, 14 netos e 12 filhos, é o prazer da criançada.
E ele é aclamado por onde passa. Adultos o reconhecem e, inevitavelmente, querem fazer parte do relicário deste senhor que descobriu, há pouco, um tumor (benigno) no estômago. Entre risadas e um copo de vinho branco com Coca-Cola, o tal do “dedo sujo”, ele diz: “O médico, muito divertido, me disse: ‘Veneno se mata com veneno. Deixa ali, se está quieto, deixa quieto. Depois, leva para o túmulo, como contrapeso’.” E dê-lhe gargalhadas. Dele e do médico primeiro, depois, dele e minhas.
O “Tio da Casquinha” ri à toa. Criou 12 filhos – seis homens e seis mulheres –, e alguns deles moram fora do Rio Grande do Sul. Ele, natural de Passo Fundo, conta que saiu de sob as asas dos pais aos sete anos (conforme conta e, conforme lembra, encontram-se algumas contradições, que, avisa-se ao leitor, pode confundir a história desta figura singular no cotidiano da cidade).
Ele recorda que começou a trabalhar em Caxias lá pelo final dos anos 40. “Talvez 1947. Ou 1946?”, hesita, entre um ano e outro. Talvez, nesse momento, o tempo seja o que menos importa. Enquanto, unilateralmente, “se trocam idéias”, um e outro passante se dá ao direito de se meter na conversa. “Lembro do ‘Tio’. Ele me vendia ‘casquinhas’ no L...”, diz um programador de computador, frequentador do bar.
O “Tio da Casquinha” mantém a rotina. Acorda às 6h e logo se desloca para a frente das escolas. Percorre um mundaréu de quilômetros diariamente. Não gosta de falar de algumas coisas, mas não se exime de revelar que é amigo de alguns figurões da cidade. “Cheguei outro dia no F... e ele me convidou para jogar um carteado. Logo mostrei meu baralho: um leque de notas de 100 milhões [sic!]”, exibe-se.
Ingenuamente, talvez, o “Tio da Casquinha” confunde-se com a denominação da moeda brasileira. Mas está atento aos desmandos do governo Lula. E também de olho no mercado imobiliário. Fala que tem dinheiro e, ao mesmo tempo, previne. “Não tenho medo de ninguém. Encaro qualquer um.” Resgata da memória um acontecimento em Soledade (cidade do Planalto Médio do estado), onde, segundo ele, “passou a faca” em outras quatro pessoas, junto com mais alguns amigos – em um momento diz dois, em outro, três. Não dá para saber ao certo.
Conta que foi garçom no Café Elite, em Passo Fundo. E garçom consagrado. Chegou a trabalhar em Caxias na mesma função. Houve reconhecimento. Mas decidiu seguir o próprio caminho. As lembranças só o fazem dar mais risadas, boca sem dentes, mas com bonança.
Ao mesmo tempo, faz piada com tudo. “Ali na praça Dante, uma mulher, com um carrão, me comprou uma ‘casquinha’. Quando ela ergueu a perna para entrar no carro, eu vi: ela estava sem a calça de baixo! Aí eu perguntei: ‘Mas, como assim?’ Ela respondeu: ‘É que é muito quente.’ Eu pensei comigo: ‘Pô, um carrão, cheia do dinheiro e sem calcinha...” (gargalhadas)” Assim é o “Tio”.
Que brinca com as crianças e ensina musiquinhas inocentes a elas, em qualquer escola que pare. Conversa com os pais, chega a discutir com funcionários, troca idéias com os professores. Conta novas anedotas (nem tão novas, na verdade; improvisações, traquejo de quem está acostumado a viver em contato com um público que ainda não assimilou as vicissitudes da vida).
Ainda entre um gole e outro da mistura, ele fala emocionado da família. Garante que todos estão bem. Orgulha-se dos filhos, dos netos e dos bisnetos. E diz que todos ficarão bem quando ele morrer. Já tem até espaço reservado no Cemitério Parque.
Paga ainda, e sabe que depois os filhos continuarão a pagar pelo espaço. Mas não se preocupa. Todos eles trabalham – “Que nem eu!”, diz – e estão em boas condições financeiras. Às vezes oferecem-lhe dinheiro. Ele retruca: “Ganho 400, 500 milhões [sic!] tenho dinheiro para dar pra eles.”
Mas não é tanto isso que o incomoda. Não gosta de quem fuma enquanto o outro janta; não gosta daqueles que não gostam de trabalhar; observa quem não lava as mãos antes da janta; não recebe gorjetas por ter encontrado objetos, inclusive dinheiro, e devolvido intactos estes objetos e o dinheiro.
Aliás, aqui se tem outra história. “Encontrei uma carteira, aqui na (avenida) São Leopoldo. Tinha dois mil e duzentos. Mais um cheque de 300. E o cheque tinha o endereço. Rua E..... Cheguei em casa e falei com a mulher. Disse que ia no lugar depois da janta. E fui. Cheguei lá e perguntei se tinham perdido uma carteira. Disseram que não. Mostrei a fotografia da (carteira de) identidade. A mãe reconheceu a filha, ligou pra ela e ela disse: ‘Dê cinqüenta reais para ele e diga muito obrigado.’”
Ao receber o dinheiro, o “Tio da Casquinha” respondeu: “Minha senhora, guarde o dinheiro. Quem sabe eu perca a minha carteira! E fui embora.” Em outra ocasião, encontrou um celular no chão, próximo a uma tradicional escola da cidade. Guardou-o no bolso. Um aluno percebeu e informou à secretária. Quando ela o intimou, o “Tio da Casquinha” respondeu que só devolveria o aparelho ao próprio dono.
Em seguida, o telefone tocou. Ao atender, identificou-se e, logo depois, a mãe do menino (ele não lembra a idade) o encontrou para recuperar o aparelho. Quis gratificar-lhe, mas ele novamente recusou. Irritou-se, conforme proclamou. “O aparelho é teu! Não tem que me pagar!”
Outra ainda, foi quando encontrou um blusão no Parque dos Macaquinhos (ou Getúlio Vargas) e, no dia seguinte, depois de acondicioná-lo em um saco plástico, o expôs no carrinho das “casquinhas” e, não muito tempo depois, uma menina (novamente não sabe dizer a idade) identificou-o.
Intercala histórias de bondade com depoimentos ao vivo de convivas do boteco. “É bom que existam pessoas assim, elas fazem o mundo valer a pena”, afirma o programador de computadores. Imediatamente, chega outro assíduo freqüentador do local. Ri e abraça o “Tio da Casquinha”. “Ah, o senhor não deve lembrar de mim, mas eu comprava a ‘casquinha’ quanto tinha seis anos na frente da escola L....” Ilusão: o “Tio” está em outra. Afinal, aos 77 anos, quatro copos de vinho com Coca-Cola podem ser estonteantes. De alguma maneira, sei disso.
Ao conversar de novo, depois dos abraços dos freqüentadores do bar, ele conta sobre um poste que está no meio do terreno da casa dele e diz que está para arrancá-lo. Toda noite, prossegue, ele escava um pouco mais. Quer transportá-lo para um “pouco mais à direita” de onde está para transformá-lo em um suporte para um varal de roupas, a fim de que a mulher tenha mais espaço para pendurá-las (as roupas).
Vira-e-mexe, a esposa, Maria de Lourdes, entra na conversa. No carrinho sobressalente, carrega um saco com terra, daquelas boas para plantio. Leva para a companheira, que dedica-se ao jardim, mas também cuida do mercadinho que ajuda no sustento da família. “Ela faz tudo sozinha”, vangloria-se. “Mas eu trabalho, muito. E o dinheiro vem”, ensina.
“A gente incomoda, mas ama os amigos.” E é com o desejo de felicidades e bençãos que ele se despede de todos os que aperta a mão.



Essa é uma conversa normal, que termina por volta das 22h30 do dia 11 de agosto de 2006, no bar do Paulo.

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