apontamentos

Eis-nos aqui falando sobre a cidade, do seu cotidiano de mortes, falta de água e escasez de moradias, de orçamentos minguados, sonhos e jardins floridos, de responsabilidades repassadas, vaidades sociais, hospitais superlotados (como se algo fosse mudar sem a afirmação da prevenção) e etc.
Eis-me aqui, recordando fatos, esquinas, prédios, pessoas, calçadas e sensações.
A troco de quê?

* * *

Esquinas prédios pessoas calçadas sensações são visões particulares.
Compartilhá-las é uma maneira de ressignificar minha solidão e meu egoísmo.
Outras pessoas aí estão.
Com as suas calçadas, esquinas, suas sensações adolescentes e verdades pueris.
Como eu fui um dia? Como eu sou ainda hoje?

* * *

Paulo Leminski (1944-1989): "A cidade é uma cartilha. Você não sobrevive numa cidade se não souber ler o nome das ruas, por exemplo. A cidade é uma espécie de livro aberto. O viver na cidade leva à alfabetização. E o mero crescimento vegetativo de uma população mais alfabetizada aumenta a venda de livros."

* * *

Um edifício erguido no lugar da casa antiga significa possibilidades de moradias?
Um distrito industrial significa que a cidade está crescendo, se deterioriando, se reciclando - ou são só bolsões de lixo e miséria interligando um núcleo ao outro?
Um prédio signifca emprego?
Um templo significa segurança?
Uma delegacia de polícia significa acreditar que o céu é um limite?

* * *

"Contemplar minha ausência", escreveu Calvino.
Consubstanciá-la com minha presença, afirmo.

* * *

Só à distância as esquinas se distinguem.
De cima, uma difere da outra: há um terreno baldio em uma, um esqueleto de construção na outra, uma casa de madeira que desmemoraliza gerações.
Uma senhora no peitoril carcomido observa o homem de chapéu e ritmo lento em sentido contrário ao movimento da cidade.
De perto são nuances que diferenciam as esquinas.
É a textura, a rugosidade, às vezes o cheiro - de urina aqui, de comida ali.

* * *

A cidade se refaz.
Diuturnamente.
Lojas que abrem e que fecham, bares que viram moda e se desfazem com o brilho fácil da noite, lares que se descontroem com o espoucar de um .38, praças que são ocupadas, migrantes de todas as etnias que desembarcam na rodoviária, chegam de avião, ou, prosaicamente, de automóveis.
Com sorrisos, com humores nauseabundos, com perdões, com angústias rotundas.
As cidades nascem espontâneas, nascem das ruínas, nascem em todas as direções.
Elas morrem ao nascer, entupidas de automóveis como um suicida que esvazia frascos de medicamentos, enquanto a madrugada envolve a cidade em seu regaço.
Billie Holiday sob a neblina, as luzes da cidade feito lamparinas.
De mãos dadas com Lou Reed vendo o sol nascer.

Crônica publicada no jornal Pioneiro, em 29 de julho de 1999.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog