Mas...

De vez em quando, penso que eu bem poderia ocupar este espaço com mais senso, devanear menos - como querem amigos meus -, fazendo críticas aos governos, que não se incomodam com as pessoas mendigando comida e carinho, revirando e rasgando sacos de lixo seletivo, roubando para comer. Mas, confesso - e peço que me desculpem -, meu estro não é esse.

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Penso, também, que deveria discorrer sobre questões da saúde pública, direcionando meus escritos para o drama das mães que levam os filhos cobertos de sarna aos hospitais, crianças com cinco meses e 2,5 quilos, futuros ameaçados pela falta de cuidados básicos e de orientação. Podia citar casos, por exemplo, de mães que passam erva-mate nos "países baixos" dos filhos, achando que as assaduras seriam curadas, desconhecendo que água e sabão é o remédio mais garantido nesse Brasil defenestrado pelas bulas e pelo pouco caso com os pacientes (em todos os sentidos) brasileiros. Mas, reconheço, esse assunto foge de minha alçada e compreensão, pois procuro passar longe dos hospitais - pela impressão que eles me passam - e pouco entendo dos mecanismo legais que orquestram as grandes multinacionais do setor.

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Outras vezes penso que se eu me dedicasse a ponderar sobre os descaminhos políticos em que se enreda esta terra de Martim Afonso, de prosperidade e de oportunidades, de ufanismo - gigante adormecido, coma prolongada ou síndrome de Jeca Tatu? -, quem sabe, quem garante, poderia provocar discussões entre estudantes, inflamar ações entre operários, modificar posturas de empresários, "abrir os olhos" de quem lesse esses 23 centímetros para os desmandos e as prioridades e, assim, ajudasse na transformação (alguém falou em revolução?) desse país que vai para a frente, uou, uou, uou, uou, uou, de uma gente unida e tão contente, uou, uou, uou, uou, uou. Mas, cá estou, em dúvida como tantos viventes. Sabendo o que não quero mais ver nas ruas, sob os holofotes dos postes públicos à noite ou na luz do sol sob as marquises cheias de chagas.

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Ainda me ocorre um outro assunto: a globalização. Ou, como quer frei Betto, a holística. Porque não invisto meus dedos nas teclas e deliro minha retina na tela a formar frases posicionadas sobre a migração do capital e a pauperização da mão-de-obra? É possível, até, que eu começasse a ganhar dinheiro, afinal, procuro manter-me informado a respeito, quando posso sempre as entrevistas com o Greenspan, compro a Caros Amigos, de vez em quando leio caderno de Economia da Zero Hora e a Gazeta Mercantil. Qual o quê? Esse é um assunto que ainda não compreendo. E que me assusta, reconheço. Ainda mais quando leio as análises de Noam Chomsky. Mais ainda quando vejo os índices da Fundação Getúlio Vargas. Mais, muito mais, quando fico sabendo que didáticas escolares se norteiam pelo saldo bancário dos pais e não pelo encaminhado de ideias não-seriais. E aí o que vem pela frente se torna ainda mais perigoso e, para não ficar sem lastro neste lodo, trato de tecer considerações sobre as relações, a poesia, o cotidiano, o amor, a amizade, a rua.

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José Carlos Capinan: "Não tenho mitos / Não tenho vícios / Me sinto assim num precipício, numa vertigem ou viagem / Me sinto assim num trem / E assim no trem eu sinto os ritos de passagem." (Confissões de Narciso, Civilização Brasileira)

Crônica publicada originalmente no jornal Pioneiro, 30 de julho de 1998.

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