Folhas amarelas

É possível que as mesmas coisas tenham acontecido em outras circunstâncias. Sim, são as mesmas coisas ainda, ainda que os tempos sejam outros. Isso nos remete à questão da circularidade, do eterno retorno, do yin e do yang, do movimento natural que é propriedade das pessoas e das coisas. Mas, e como fica nossa noção de que o presente não existe? Se o futuro é algo que está por vir e o passado já deixou de existir (numa linha imaginária), o que temos para lidar, para manusear, além da sensação de fragilidade que nos acomete diante de um revés?
Com certeza não são mais cubos pedagógicos no chão acarpetado de uma maternal. O consumo de crack e a guerra em Kosovo não nos chocam mais? Dirá alguém que temos problemas maiores a resolver em nosso redor. Mas se o mundo é (está) globalizado, ninguém deveria ficar indiferente ao drama de meio milhão de albaneses à deriva, entregues à dor. Caso contrário, a indiferença tomou proporções assustadoras, corpos e mentes anestesiados nesta aldeia global, dezenas de opções na TV, outras dezenas no rádio, mais um número aparentemente sem fim de jornais e revistas. Pra quê?

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Aí lembro de Umberto Eco determinando o papel do intelectual, a quem cabe anunciar o que poderia acontecer ou ao referir-se ao que já aconteceu (passado-presente-futuro?). Aí penso em Mallarmé questionando a existência do poeta (e da poesia) em tempos de miséria. E quando a realidade é só percebida ao tornar-se ação, aí o contexto já dispensa a presença do intelectual.
Eu, pretensiosamente, a 750 metros acima do maro, pergunto-me: há saída sem uma causa? Há escapatória sem amor, sem o amor incondicional pelas pessoas e pelas coisas?

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Meu amigo fundamental me buzina no ouvido. Diuturnamente, graças a Deus. Insiste em projetos e ambições singulares e, ao mesmo tempo, motivadores. Por que singulares? Pela possibilidade de ralização. Por que motivadoras? Pela capacidade que elas têm de provocar movimento em direção a alguma coisa. Algo assim como os pedais da minha bicicleta em plena Rota do Sol num sábado à tarde, o vento na cara, o sol nas costas, os riscos no asfalto que se desenha diante do olhar.
As palavras correm o risco da banalização. Ideal, liberdade, democracia, direitos humanos, solidariedade... Só mantêm a sua real condição significante quando quem as usa está conectado com o Divino, muito além da Torre de Babel.

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Comer é bom, sonhar também. Para que o sonho seja dádiva, é preciso comer. Nelson Rodrigues, ao lembrar dos seus períodos de dificuldade, dizia, obsessivamente, ser impossível qualquer reação estando o sujeito de barriga vazia.

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Uma garota chupa pirulito. A amiga fuma. A outra enrola os longos cabelos louros. Eu peço mais um chope e me acomodo melhor na cadeira, enquanto o céu despenca em forma líquida.

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Estamos na estação das folhas amarelas. Meses em que caminhar na Montaury ou na Dom José Barea significa "chapinhar" no mar de folhas de plátanos que cobre as calçadas e emoldura o parque. Ah, folhas da relva. Os plátanos e seus  galhos estendidos sobre nossas cabeças, ensombreando nossos passos no verão - cada vez mais senegaleses - e transformando em cartão-postal a paisagem caxiense, naqueles dias em que o céu de Caxias adquire tonalidades impressionantes, mediaado por uma luz que só faz reforçar o jogo do claro e escuro.
Uma dinâmica barroca num universo deificado por Baco e pela primazia industrial, duas entidades perfeitamente incorporadas. Como são infinitas as possibilidades de sonhar, com posturas diferentes, mais íntegras, menos vilipendiadas, mais telúricas, menos thrash. É. É isso aí mesmo. Até mais ver.

Crônica publicada no jornal Pioneiro, quinta-feira, dia 8 de abril de 1999.

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