Copacabana, 7 andar

Ela nasceu em 1952, no dia de um junho carioca. Criou-se entre Niterói, Copacabana e os jardins do Colégio Benett. Quatro anos depois, ditava seus poemas para sua mãe, Maria Luiza. Ana Cristina Cesar conheceu o perigo de viver - quem pensa, logo sente a angústia. Reconheceu o não, testemunhou a vida. Suicidou-se em 29 de outubro de 1983. Representante do discurso fluente do amor - aquele que reconhece a dificuldade de respirar e a velocidade do nosso tempo - Ana Cristina esteve para os anos 70 como nós estamos para os anos 90, "nós do mesmo sexo não / fabricamos delícias: / coçamos amenidades / a tensão dos ângulos / distantes".
Densa em suas reflexões, Ana Cristina publicou desde cedo: já aos sete anos o público conheceu seus primeiros poemas. Foi profesora, jornalista, tradutora. Viajou para Londres, Irlanda, País de Gales, Itália, França, Holanda e Estados Unidos no final da década de 1960. Incursionou pelo sertão nordestino: Bahia, Pernambuco, Ceará e Maranhão em 1973. As viagens asseguraram à moça loura, bonita e solitária, a densidade que despertou a atenção paulista-antropófaga de Drummond: "E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços / que rio e danço e invento exclamações alegres. / Porque a ausência assimilada, / ninguém mais a rouba de mim." (Ausência)
Em 1976, a poesia e a prosa de Ana Cristina ilustraram a antologia de Heloísa Buarque de Holanda, 26 poetas hoje, pela editora carioca Labor. No início daquela década, escandalizou a plateia da PUC/SP quando, ao lado de Geraldinho Carneiro, palestrou sobre poesia contemporânea, ao recitar "Arpejos" (publicado em A teus pés). Em 1979, tornou-se mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no mesmo ano em que retornou à Inglaterra. Lá, publicou poemas em Cenas de abril e prosa em Correspondência completa, às próprias custas, e organizou Escritos no Rio (Brasiliense). As edições em prosa e poesia foram reunidas pela Brasiliense em 1982 - oitavo número da coleção Cantadas Literárias - em A teus pés. O livro foi relançado em coedição pela Ática e o Instituto Moreira Salles,que detém os arquivos e Ana Cristina, antes sob a responsabilidade do poeta Armado Freitas Filho. A nova edção do já clássico A teus pés traz, também, fotos inéditas do primeiro lançamento do livro, em 1982.
Em 1980, Ana Cristina lançou Luvas de pelica. Estava na Inglaterra, para onde retornou com bolsa de estudos e recebeu o títuo de Master of Arts em Theory and Practice of Literary Translation, em Essex. Aproveitou a deixa e percorreu a França, Itália, Espanha e Holanda. Ainda em 80, publicou Literatura não é documento, pelo MEC/Funarte, no Rio de Janeiro, para onde voltou em 1981. Ana Cristina foi colaboradora de vários jornais e traduziu ativamente: é dela a versão de poemas de Silvia Plath para a antologia de poesia norte-americana Quingumbo, em 1980, e de poemas de Emily Dickinson publicadas no Folhetim (extinto encarte da Folha de São Paulo), em 1982.
Ana Cristina, conforme Armando Freitas Filho, teve uma obra breve. Ela "morria de sedeno meio de tanta seda. Nunca nos esquecemos de sua paixão acesa e seca. O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? (...) Ela não foi - ela fica - como uma fera". Nós, permanecemos à espera, nós que não sabemos que virar do avesso é uma experiência mortal. Mas reconhecemos que Ana Cristina tinha direito a ser mais hermética, alguém que nunca conseguiu explicar sua ternura mas que despertou a ternura em todos nós. Mansamente. Quinze anos sem Ana Cristina fazem a gente pensar na densidade das coisas, deusa órfica que instala a morosidade no cotidiano de chuvas tamborilando blues na vidraça.

Crônica publicada no jornal Pioneiro, em 5 de novembro de 1998. Republicada para antecipar a lembrança dos 50 anos da poeta.

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