Nascido em Nossa Senhora do Desterro, hoje, Florianópolis, em 24 de novembro de 1861, o poeta CRUZ E SOUSA obteve o reconhecimento literário depois da morte. O crítico José Veríssimo (1857-1916), preso “aos momentos áureos do Classicismo e às vertentes mais sóbrias do Romantismo” (BOSI, 2000, p. 253), tachou-o como “decadente”, virando as costas para a renovação simbolista; muitos anos depois, Paulo Leminski (1944-1989), na biografia Cruz e Sousa – O negro branco (1983 in 1990, p. 51), leu-o entre os “primeiros modernos”, e arriscou dizer que a experiência simbolista “é extremamente concreta. Mas eles [os próprios simbolistas] a mitificaram, camuflando-a” (2001, p. 85). O ensaísta francês Roger Bastide (1898-1974), por sua vez, reconheceu o poeta catarinense como um dos três grandes expoentes universais do simbolismo, manifestação da vanguarda francesa que “pensava por imagens”, ao lado do alemão Stefan George (1868-1933) e do francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), conforme Lêdo Ivo (1924-2012), no capítulo de O ajudante de mentiroso, publicado em 2009 (http://www.jornaldepoesia.jor.br/BLBLcruzesouza.htm).
A observação de Bastide não se perdeu no emaranhado da crítica preconceituosa, embora ainda com restrições: Cruz e Sousa se tornou o maior poeta simbolista brasileiro, mas continua fora da seleta Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo – embora esta o celebre, como por ocasião do centenário de sua morte em 1998. Para alguns, suas origens impediram seu ingresso na ABL, a mesma que tem o mulato Machado de Assis (1839-1908) como o primeiro presidente e o abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) entre seus pares.
É por seus versos e pela poética que Cruz e Sousa “colocou a nova escola em diálogo com a tradição brasileira e esteve à frente do novo movimento” (BRAVO, 2006, p. 85). Os poemas do poeta catarinense são marcados pela musicalidade (aliterações, sinestesias, cognações e assonâncias), pelo eruditismo, pelo individualismo, pelo sensualismo, pela espiritualidade e por um sutil jogo de palavras, obtido pelos recursos fonéticos; as poesias também podem ser destacadas pelo desespero e pelo apaziguamento que transmitem, além da obsessão pela cor branca – no sentido da transparência, da nebulosidade, dos brilhos; “seja na luminosidade do luar, seja na neblina, seja na presença da neve, seja no brilho dos cristais, como em Antífona, o poema de abertura” (BRAVO, 2006, p. 85). O livro em que consta o poema é Broquéis (1893), que, com “força e originalidade”, de acordo com Bosi, “renova a expressão poética em língua portuguesa” (2000, p. 270). Nesse aspecto, às vezes há uma leitura parcial da poesia de Cruz e Sousa, entendida superficialmente como uma necessidade de “branqueamento”.
Há de se considerar que, assim como os pinheiros de seus versos – que enfeitam as paisagens catarinenses – a obsessão por mulheres brancas e louras não o distancia de sua terra, colonizada por alemães e açorianos, poloneses e italianos. “Uma formação estética harmoniosa rege a trajetória do negro Cruz e Sousa, impondo-o como um dos poetas mais brancos de nossa história, no tocante aos seus meios de expressão e aos seus interesses e curiosidades culturais. Essa brancura, que se assenta nos processos poemáticos e versificatórios, e em sua auréola espiritual, não esconde, porém, as numerosas ilhas de negritude, em que o poeta alude à sua raça, à sua classe, ao amargurado e desamparado destino pessoal gerado pela sua cor humilhada e até amaldiçoada”, assegura Lêdo Ivo (2009).
Paulo Leminski identifica um viés expressionista em Cruz e Sousa, que se manifesta quando há a valorização de imagens e cores do físico pelo psíquico. “Em Cruz”, escreve Leminski, “um certo estilema simbolista de fascinação pelo branco, que, em Mallarmé, é a página, antes do poema, traduz-se, por signos bem evidentes, em tesão pela carne da mulher branca: papel a ser escrito, sexualmente, pela tinta negra” (1990, p. 47). Na história de Cruz e Sousa, segue, “vida e poema se entrelaçaram muito mais do que ele próprio imaginaria, naquelas pré-freudianas eras. Nem Cristo escapou dessa sexualização”, conclui, citando o poema “Cristo de bronze” (1990, p. 48).
Filho de escravos alforriados, ele “Sofreu uma série de perseguições raciais, que culminaram com a proibição de assumir o cargo de promotor público em Laguna, para o qual fora indicado” em 1884 (BRAVO, 2006, p. 85) – existem outras contradições: as alcunhas que João da Cruz e Sousa recebeu vão além da menção pejorativa: Poeta Negro, Dante Negro, Cisne Negro; a sua postura: ele era visto circulando “como dandy, fantasista e caprichoso em suas roupas, africanamente escandalosas, dentro dos padrões da vestuária europeia e branca do século XIX”, de acordo com Leminski (1990, p. 34).
Entre 1871 e 1875, Cruz e Sousa foi bolsista do Ateneu Provincial Catarinense, onde aprendeu inglês, francês, latim e grego, e onde teve acesso às obras de Charles Baudelaire (1821-1867), Giacomo Leopardi (1798-1837), Antero de Quental (1842-1891) e Guerra Junqueiro (1850-1923), entre outros autores de seu tempo. Aos 20 anos ingressou no jornalismo: fundou o semanário Colombo, foi diretor do jornal ilustrado O Moleque (fortemente discriminado devido ao teor crítico) e do jornal Tribuna Popular (1881), trabalhando ao lado do escritor e amigo Virgílio Várzea (1863-1941), com quem publicou Tropos e Fantasias, em 1885. Em seus textos, combateu a escravidão e o preconceito racial, luta que ampliou palestrando ou participando da campanha antiescravagista promovida pela sociedade carnavalesca Diabo a Quatro em 1887.
Também foi arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), já no Rio de Janeiro, onde foi morar em 1890, depois de navegar pelo litoral brasileiro a bordo da companhia de teatro do português José Simões Nunes Borges; foi no Rio que conheceu Gavita Rosa Gonçalves, o grande amor de sua vida, com quem casou e teve quatro filhos – todos morreram cedo, vítimas de tuberculose, a mesma doença que o matou, quando morava em Minas Gerais e se encontrava na Estação de Sítio, em Barbacena, à procura de um clima melhor para sua saúde. A doença não regrediu e ele morreu aos 36 anos, no dia 19 de março de 1898.
Foi, também na capital carioca, que conheceu o paranaense Nestor Victor (1868-1932), grande amigo e divulgador de sua obra, e o acadêmico negro José do Patrocínio (1853-1905), que depois se incumbiu do sepultamento do poeta no Rio de Janeiro, vencida a humilhante etapa ferroviária do vagão de transporte de cavalos, de Minas Gerais até a capital carioca, recorda Lêdo Ivo (2009). Ao chegar, foi sepultado no Cemitério de São Francisco Xavier pelos amigos, mas o mausoléu só foi inaugurado em 5 de agosto de 1943. Lá, ele permaneceu até 2007, quando os restos mortais foram acolhidos no Palácio Cruz e Sousa, antigo palácio de governo do estado de Santa Catarina e, desde dezembro de 1986, sedia o Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC), no centro de Florianópolis.
Em vida, havia publicado três livros voltados ao teatro: Macário (Reccurci do drama de Álvares de Azeve­do), com Virgílio Várzea (1875), Julieta dos Santos: homenagem ao gênio dramático brasileiro, com Virgílio Várzea e Santos Lostada (1883), e Calemburg e Trocadilhos, com a colaboração de Moreira de Vasconcelos (1884); de poesia, além de Tropos e fantasias e Broquéis, publicou Missal (poemas em prosa) este também em 1893. Depois, vieram Evocações (1898), Faróis (1900) e Últimos Sonetos (1905). Vários são os volumes de antologias e publicações póstumas, inclusive no formato eletrônico (Biblioteca Nacional, 2002), e um volume de não ficção, Cartas de Cruz e Sousa, organizado pela professora e pesquisadora cruz-altense Zahidé Lupinacci Muzart (1939-2015), em 1993.
No estado, é patrono da cadeira número 15 da Academia Catarinense de Letras; além de nominar o palácio, próximo à Praça XV de Novembro, vários municípios têm seu nome em ruas e avenidas e, em Lages, existe o Clube Cruz e Sousa, inaugurado em 22 de setembro de 1918; em 1998, o cineasta Sylvio Back (1937) dirigiu o filme Cruz e Sousa – o Poeta do Desterro, que homenageia o poeta, com o ator Kadu Karneiro como intérprete, em que os textos são só os poemas. A obra de Cruz e Sousa já foi traduzida e publicada em pelo menos oito idiomas, sendo o primeiro reconhecimento feito no jornal chileno El Mercurio, conferência proferida em 1899 pelo poeta e diplomata boliviano Ricardo Jaimes Freyre (1866-1933). Em língua espanhola, ainda ganhou destaque no Uruguai e no Peru, na Argentina e na Espanha. Constam, ainda, registros de publicações na Itália, na Alemanha, na Romênia e na França. Para ele, Cecília Meireles (1901-1964) escreveu “Beatitude”, e ela, ao lado de Tasso da Silveira (1895-1968) e Andrade Muricy (1895-1984), resgataram o simbolismo, ainda que de forma provisória.


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