Hoje, 24 de agosto, o curitibano Paulo Leminski completaria 75 anos. Embora tenha vivido pouco, ele teve “uma vida inteira de poesia. Uma vida totalmente dedicada ao fazer poético”, nos conforta Alice Ruiz (in LEMINSKI, 2013). Entrega total: “foi um caso raro de poeta em tempo integral”, assegura Carlos Verçosa (1995). Foi além da poesia, muito mais – escreveu contos, crônicas, romances, artigos, resenhas, história em quadrinhos, canções; fez traduções, televisão e propaganda, lecionou, concedeu entrevistas, polemizou. Tornou-se referência, caneca, camiseta, pichação, pôster, imã de geladeira, CD-Rom, dissertações e teses; exposição (Múltiplo Leminski já foi vista por mais de 500 mil pessoas) e Ocupação (com curadoria de Ademir Assunção e consultoria de Alice); e ganhou songbook, livros de correspondências e biografias, oficial e não oficial. Morreu em 7 de junho de 1989. “E nunca vai haver um outro Paulo Leminski”, garante Rodrigo Garcia Lopes (2018).
Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Letras – Literatura, da UFRGS, recém finalizada a graduação em Jornalismo, não imaginava o universo que se abriria à minha frente, sequer desconfiava das profundidades em que me lançaria ao tomar aquela decisão. Ainda era cético em relação ao pragmatismo científico, tinha o tolo receio de ver contaminado o prazer da leitura despreocupada (como se fosse possível ler sem consequências!), já que apenas me deixava levar pelas leituras de poetas que iam se ligando aleatoriamente (cada coisa em que se acredita!), sem me preocupar com os pertencimentos ou com o significado de suas poéticas. Ao mesmo tempo, parecia ser um caminho para entender melhor a arte e a magia de fazer poesia.
Na hora de escolher o “objeto de estudo”, pretendia “investigar” um autor que, naqueles anos, era mais conhecido como compositor e líder de uma banda do rock brasileiro dos anos 80 do que como poeta. Em conversas com alguns colegas, fui gentilmente demovido da ideia; eles alegavam que o poeta em questão ainda não tinha lastro suficiente para ser submetido a uma leitura acadêmica e corria o risco da banca se mostrar refratária – o peso do cânone. Aceitei a opinião, sem mesmo apresentar o nome à minha orientadora, e me voltei, sem hesitar, para um outro poeta. Este já fazia parte das minhas leituras preferidas, já o acompanhava com atenção e prazer. Este era Leminski. Inicialmente, minha escolha não foi acolhida com entusiasmo pela professora; porém, frente às minhas argumentações, o autor foi aceito no Programa. Acabou que troquei o “objeto de estudo” e também de orientador.
De lá para cá – já tem uns 20 anos – a poesia de Leminski ganhou proporções que extrapolaram as paredes da academia, para o gosto dos leitores de poesia, até mesmo para os que apenas a olhem superficialmente. O trabalho que apresentei virou livro, Leminski: o “samurai-malandro” (titulado a partir de Leyla Perrone-Moisés), publicado pela Editora da Universidade de Caxias do Sul (EDUCS), em 2009. E já se passaram 30 anos desde que ele morreu, no dia 7 de junho de 1989, no hospital, “literalmente ocupado pelos amigos mais próximos, enquanto outros tipos de fãs – os anônimos descamisados, companheiros de infortúnios e poesia – se espalhavam pelos bares das redondezas”, conforme narra Toninho Vaz em O bandido que sabia latim (2001).
Entre as considerações que faço em meu livro, é que Leminski soube, como poucos, aliar o acaso cotidiano com o registro imediato, sem descuidar-se do cuidado com as palavras, às vezes subvertendo o sentido, noutras aplicando a disciplina do fazer poético que, ao leitor, pode parecer relaxado, enquanto ele se arrisca em busca de horizontes quase perdidos, sem se deixar enquadrar em uma ou outra geração ou corrente poética. Irônico e observador, polemista, Leminski desconstruiu utopias ao lembrar que elas existiam. Encarregou-se de averiguar e examinar, nos detalhes, o preciso registro da vida pela linguagem.
Na edição deste mês da revista Cult, um dos muitos autores que consultei para obter subsídios para minha pesquisa, Tarso de Melo, descreve um sentimento que parece mover todos aqueles que admiram a poesia de Leminski. O artigo, “Por que amamos Paulo Leminski?”, traz novos elementos para que possamos compreender porque um poeta chama tanta atenção assim. Em 2013, a Companhia das Letras editou Toda poesia, reunião dos livros de Leminski que ficou várias semanas nas listas dos “mais vendidos” e já vendeu mais de 170 mil exemplares – foi o “livro do ano”!. Sucesso, resume Tarso de Melo, sucesso que pôde ser verificado quando a Brasiliense publicou Caprichos e Relaxos, em 1983, a primeira edição comercial de seus trabalhos até então publicados, que teve reedições, com dezenas de milhares de exemplares circulando por aí.
Hoje, Leminski é lido no Brasil, na Argentina, em Cuba, no México, na Espanha, Polônia e Hungria. Sabe-se lá onde mais e tudo indica que não vai parar por aí. Como explicar tudo isso? Em um artigo intitulado “Leminski e as gerações futuras” (caderno “Sábado”, do jornal literário O Povo, de Fortaleza), de fevereiro de 1998, Melo emenda uma pista na pista revelada por Alice: Leminski não viveu só de poesia, mas viveu, “pura e simplesmente, para a poesia”. Parece pouco? Melo transcreve uma fala de Leminski, que pode contribuir para o entendimento desse viver. Para Leminski, o poeta “é uma necessidade orgânica de uma sociedade. A sociedade precisa daquilo, daquela loucura para respirar. É através da loucura dos poetas, através da ruptura que eles representam, que a sociedade respira”.
Ano passado, Rodrigo Garcia Lopes publicou Roteiro Literário: Paulo Leminski, uma iniciativa da Biblioteca Pública do Paraná. Ao final do livro, em que oferece ao leitor uma aproximação com a obra e a vida do poeta curitibano, Lopes afirma: “Leminski faz falta na cena cultural e literária brasileira. Fico imaginando para onde teria ido sua poesia se ele tivesse sobrevivido. O que ele, que sempre interveio no debate cultural de seu tempo, estaria achando das coisas que andam acontecendo hoje na literatura, no mundo e no Brasil? Tempos sombrios” (LOPES, 2018, p. 2017).
Infelizmente, não temos como saber. Mas que ele faz falta, ah, isso faz. Resta reler, uma vez mais, a poesia de Leminski. Esta permanece.
Salve, salve, Paulo Leminski!


samurai mestiço
te recordo
polaco polilingue
nos anos 60
como um jovem rimbaud fileleno
saído
do templo neopitagórico de dario veloso
(que o incêndio helenófobo ainda
não havia abrasado) –

te recordo leminski
lampiro de curitiba
capiau cósmico
eletrônico violeiro astral
fabbro – te recordo:
você
partiu agora
entremeado às estrelas de iessiênin:

enquanto o crepúsculo roxo
de tua cidade simbolista te chora
você sonha
como o poeta japonês
o após sonho dos samurais mortos

(Haroldo de Campos in DICK, CALIXTO, 2004).


(A partir de CAMPOS in DICK, CALIXTO, 2004; LEMINSKI, 1985, 2013; MELO, 1998, 2019; RUIZ in 2013; VAZ, 2001; VERÇOSA, 2005)

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