O poeta HAROLDO DE CAMPOS completaria 90 anos neste 19 de agosto. Nascido Haroldo Eurico Browne de Campos em 1929, quando morreu, em 16 de agosto de 2003, tinha 73 anos. Como se costuma dizer, ficou a obra. Fica também a admiração, a curiosidade e o querer mais por saber que a produção de Haroldo sempre pareceu inesgotável. Foram mais de 50 livros, entre textos criativos, textos críticos e teóricos, transcriações e participações em antologias. Sem contar os artigos em revistas e jornais, CDs, vídeos, peças teatrais (entre elas, Retrato de um Fausto Quando Jovem, dirigida por Gerald Thomas, em 1997) e a participação em filmes (CAMPOS, 2004). Seu primeiro livro foi publicado em 1949, O Auto do Possesso, quando participava do Clube de Poesia, com influências dos poetas da Geração de 45.

Incluído na geração de poetas da segunda metade do século XX, que viveu novos desafios culturais, como a guerra fria, a condição atômica, as lutas raciais o neocapitalismo e a tecnocracia (BOSI, 2000), Haroldo também propôs a renovação da linguagem, que desde sempre abrangeu conceitos filosóficos (alienação e dialética) e noções cibernéticas e da Teoria da Informação (entropia, redundância, emissor, receptor, código e mensagem), ainda segundo Bosi (2000). Em companhia do irmão Augusto de Campos (1931) e do amigo Décio Pignatari (1927-2012), ficaram conhecidos por estabelecer um novo parâmetro à literatura brasileira, a poesia concreta, ou o Concretismo – que nos países de língua alemã está associado aos nomes de Ernst Jandl (1925-2000), Gerhard Rühm (1930) e ao grupo de Stuttgart,  a partir do filósofo Max Bense (1910-1990).
A Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), em dezembro de 1956, e no Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, em 1957, “ao lado de pintores, escultores, gravadores, críticos, etc., um grupo de jovens poetas mostrou que se pode fazer vanguarda no Brasil sem simplesmente repetir, macaqueando as experiências estrangeiras de há meio século”, escreveu o crítico e poeta Mário Faustino, em sua página “Poesia-Experiência”, no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil do dia 6 de janeiro de 1957 (in BOAVENTURA, 2003, p. 458), referindo-se ao trio e aludindo à participação dos poetas Ferreira Gullar (1930-2016), Mário da Silva Brito (1916), Edgard Braga (1897-1985), Pedro Xisto (1901-1987), José Lino Grünewald (1931-2000), Wladimir Dias-Pino (1927-2018) e José Paulo Paes (1926-1998) no movimento.
“A poesia concreta, ou Concretismo, impôs-se, a partir de 1956, como a expressão mais viva e atuante da nossa vanguarda estética”, assegura Bosi (2000, p. 475). A partir da antologia Noigrandes 1 (1952) – publicação inaugural do movimento concretista, com o título que remete ao provençal, incluído no décimo dos Cantos do poeta estadunidense Ezra Pound (1885-1972) –, ainda em versos, e depois nas edições 2 (1955) e 3 (1956), quando abandonam o verso e adotam uma sintaxe espacial, e também na edição 4 (1958), que traz também o Plano-Piloto para Poesia Concreta, introduzem uma nova poética na literatura brasileira. Também colaborou com a Invenção – Revista de Arte e Vanguarda, editada pelo grupo, em cinco números, entre 1962 e 1967.
Até 1963, enquanto se manteve ligado ao grupo, Haroldo publicou os livros O Mago do Ômega (1955), Fome de Forma (1958) e Servidão de Passagem (1961), e o ensaio Da tradução como criação e como crítica, ao mesmo tempo em que se dedicava a traduzir poetas alemães, ingleses, estadunidenses, haikaistas japoneses e, em especial, Stéphane Mallarmé (1842-1898) e seu Um Coup de Dés, fundamental para as bases do movimento. Durante o período, participou de mostras e exposições na Europa, onde encontrou-se com o poeta Ezra Pound  e o músico alemão Karlheiz Stockhausen (1928-2007).
No final dos anos 60 envolve-se com o tropicalismo – os compositores Caetano Veloso (1942) e Gilberto Gil (1942), os cineastas Júlio Bressane (1946) e Ivan Cardoso (1952) e o artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980). Encerra aquela década com a publicação de Morfologia de Macunaíma, sobre a obra de Mário de Andrade (1893-1945), resultante de sua tese de doutorado em Letras, pela Universidade de São Paulo (USP), onde havia se formado em Ciências Jurídicas e Sociais em 1952.
No começo dos anos 70 leciona na Universidade do Texas, em Austin (EUA), como professor visitante; entre 1973 e 1989, é professor titular da cadeira de Semiótica da Literatura na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e depois professor emérito, e professor convidado na Universidade de Yale e volta à Universidade do Texas. Volta-se para a literatura latino-americana. É o período em que contribui com estudos sobre o neobarroco, que abre espaço para corresponder-se com Julio Cortázar (1914-1984), Octavio Paz (1914-1998) e Cabrera Infante (1929-2005) – em 1989 irá publicar O sequestro do barroco brasileiro na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, em que contraria críticos tradicionais, como Antonio Candido (1918-2017), por inserir o movimento na historiografia literária brasileira e, também por isso, é considerado o mais barroco dos concretistas. O “projeto único”, Galáxias é publicado em 1984, em versão definitiva, mas a primeira edição teve uma tiragem baixa – em 2004 a Editora 34 voltaria a publicá-lo (2ª edição). Em 1991, Caetano Veloso musicou o trecho “Circulado de Fulô” no disco Circuladô. O livro, segundo parte da crítica, é monótono e apresenta excesso de invencionismo. Para o poeta Paulo Leminski, é “uma obra livre, na qual caberia tudo” (BRAVO, 2006, p. 108). “Para construí-la, ele [Haroldo] transcendeu os valores do Concretismo que ajudou a erigir para impulsionar a convergência entre literatura nacional e universal” (idem).
Como tradutor, propôs uma nova técnica ao levar em conta os aspectos poéticos da linguagem, a transcriação. Além dos citados, traduziu, direto da língua original, Homero, Goethe, James Joyce, Bertold Bretch, Dante Alighieri (Os Seis Cantos do Paraíso) e os russos contemporâneos, como Maiakóvski, o Livro do Eclesiastes, do Antigo Testamento, com o título Qohélet = O-que-sabe: Eclesiaste: poema sapiencial, em 1990, com a colaboração do tradutor e crítico J. Guinsburg (1921-2018). “A tradução”, disse, “é muito mais do que transportar o texto de um idioma para outro.”1 Incansável, publicou numerosos ensaios de teoria e crítica literária, como Re visão de Sousândrade: textos críticos, antologia, glossário, biobibliografia (1964, 1982, 2002), A arte no horizonte do provável (1969, 1972, 1975, 1977) e Ulisses: a travessia textual (edição comemorativa do Bloomday, que coordenou, ao lado de Augusto de Campos, Munira Mutran e Marcelo Tápia, em 2001).
Até o final da vida dirigiu a coleção Signos, da Editora Perspectiva. Foi premiado com oito prêmios Jabuti (como personalidade literária, em 1992) e ganhador do prêmio Octavio Paz de Poesia e Ensaio (México, 1999); foi homenageado no Brasil e no exterior – em comemoração aos seus 70 anos as universidades de Yale e Oxford organizaram conferências sobre seu trabalho. Teve a biografia incluída no Who’s Who in the World e ganhou o título de doutor honoris causa concedido pela Universidade de Montreal (Canadá). Ao morrer, o acervo foi doado para a Casa das Rosas, em São Paulo, onde foi criado o Acervo Haroldo de Campos, composto por livros que faziam parte de sua biblioteca, objetos e obras de arte de sua coleção pessoal, além de doações – estão disponíveis cerca de 20 mil volumes, entre livros e periódicos, em mais de 30 línguas, que também incluem obras de poesia concreta brasileira e de poesia japonesa2. Pouco antes de morrer, publicou a transcriação da Ilíada, de Homero, e, postumamente foi publicado Entremilênios (2009), o que só corroborou a importância de sua escrita, “de grande densidade intertextual e algo grau de elaboração e complexidade poéticas”3 para a poesia brasileira.
Para Bosi, Haroldo está entre os poetas que estrearam em torno dos anos 50 e, em seu fazer poético, “dão exemplo da vitalidade de um entendimento moderno, lato sensu, da poesia como síntese de afeto e imagem, ritmo e pensamento. [...] O seu imaginário e a sua música já entraram para a nossa memória de leitores brasileiros: são parte de nossa história intelectual e moral” (2000, p. 488).


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