Representante do quadrinho underground no Brasil, o paulista MARCATTI (Francisco de Assis Marcatti Jr.) criou Frauzio para uma revista mensal da Escala em 2001 e, este ano, na “maioridade” do personagem, publica a HQ Frauzio: Esse pode, uma compilação de tirinhas publicadas no Instagram, mais material inédito (a campanha por financiamento coletivo ultrapassou as expectativas). De lá até aqui, recebeu pelo menos quatro troféus do Prêmio HQ Mix (inclusive o de Grande Mestre, em 2012) e três do Angelo Agostini (entre os quais, o de Melhor Roteiro pela novela Mariposa, em 2015, e de Mestre do Quadrinho Nacional, em 2016). Nascido em 16 de junho de 1962, é reconhecido como um verdadeiro artista independente desde que, nos anos 80, comprou uma impressora off-set e criou a editora Pro-C. Com ela, imprimiu histórias suas e de outros autores, como as de “grafismo denso e de leitura lenta” de Lourenço Mutarelli (autor da trilogia do detetive Diomedes, entre outras obras, algumas transpostas para o cinema), depois de escrever, editar, desenhar; com elas impressas, ainda dobrou-as, grampeou-as e as distribuiu – os títulos eram os mais surpreendentes: Mijo, Lodo, Ventosa e Prega, entre outros.
Foram 38 revistas no decorrer de uma década; espécie de fanzines que ele mesmo vendia, de mão em mão nos cineclubes, em casas de show, bares, teatros, lojas de discos e boates, ou pelo correio. Com estas ações, ganhou o troféu Jayme Cortez, do Prêmio Angelo Agostini, em reconhecimento ao apoio aos quadrinhos locais. Goida fez a seguinte apresentação: “Se você não conhece os trabalhos de Marcatti, imagine o maior exagero possível em termos de escatologia, violência, irreverência sexual e comportamental. Taras, sujeira, masturbação, dentes podres, larvas e tudo mais. Apesar disto, é impossível não ler suas histórias até o último quadrinho. Mundo cão, sim, mas feito com um estilo que em nada fica a dever aos melhores cultores do underground lá de fora” (1990, p. 224).
A revista com Frauzio chegou à tiragem de 30 mil exemplares. O personagem, ele conta, surgiu sem estudos, esboços ou enquadramentos. Investiu, e ainda investe, na criação do roteiro e como vai conduzir a história. “Como eu criava um personagem para cada história, tive a ideia de desenhar sempre o mesmo cara naquelas situações e dar um nome pra ele. Ele poderia ser o que eu quisesse, cada trama seria uma trama sem relação uma com a outra. Quer dizer, na real era uma puta sacanagem [risos]. Então assim, o Frauzio nasceu do nada, não era pra ele ter personalidade definida, e seria esta minha saída...”, revelou em uma entrevista1.


Marcatti ficou conhecido com os trabalhos publicados nos oito números da revista Circo, colaborou com a Chiclete com Banana (publicada pela Circo Editorial), Tralha (Editora Vidente, 1989), Monga (Editora Vidente, 1987) Casseta & Planeta (entre 1992 e 1995), Mega (Editora Tchê!, 1988) e Mil Perigos (1991) – ainda se encontram alguns números em sebos físicos e virtuais. Também realizou as capas dos álbuns Brasil (1989; João Gordo faz turnê pelo país para comemorar os 30 anos do disco) e Anarkophobia (1990), além da coletânea Crássicos (2000), da banda hardcore Ratos de Porão – que já fazia sucesso fora daqui, principalmente em países como Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda e Bélgica, quando a imprensa nacional a elencava como apenas mais uma banda surgida no movimento punk brasileiro, ao lado de outros nomes como Inocentes, Olho Seco e Cólera. Em 1993, escreveu e desenhou HQs com a banda.
Aliás, a década de 1980 é um caso à parte na cena cultural brasileira. Entre tantas manifestações e aparições, foi significativa para os quadrinhistas brasileiros “marginais” e, de modo geral, a ideia do “faça-você-mesmo” (“do it yourself”). Ele, que preferiu andar na contramão da moral e dos bons costumes, dava conta do processo criativo e industrial de editoração. “Eu tinha, nesse projeto, uma dúvida, se eu deveria fazer o Frauzio ou, como era um projeto já desvinculado da série, criar uma história completa para cada revista, desvinculada do personagem, sem relação uma com a outra. Fiquei então com esse conflito na cabeça, pensando como autor e editor ao mesmo tempo. Como editor, eu achava que precisava do apelo de um personagem central. Como autor, eu preferia o contrário. Nesse processo todo surgiu uma história, fui desenvolvendo um roteiro. No final das contas, resolvi colocar o Frauzio protagonizando. E aí o lance era só nomear o personagem e pronto. Na hora de avaliar o roteiro, repassar, fazer a quadrinização, percebi que muitas passagens da trama não combinavam com o perfil do Frauzio. Então precisei mexer muito no texto para alinhar a história ao perfil do Frauzio. Pra encaixá-lo nas situações. Quer dizer, a coisa tomou um rumo novo no meu processo de criação”, comenta em entrevista para Eduardo Ribeiro. Na mesma entrevista, perguntado sobre a relação com o trio Angeli, Laerte e Glauco, se ele também fazia parte da turma, ele resume: “Não. Transitei por muitos grupos. Não sei se é perfil pessoal, se sou um cara muito antissocial, ou se é circunstancial.”2
Depois de colaborar com a versão brasileira da revista Mad e ser homenageado com o Troféu HQ Mix (2012) adquiriu uma impressora, pretendia disponibilizar toda a produção de mais de quatro décadas e retomar a temática escatológica. Em 2013, reuniu histórias curtas publicadas em 1986 e 1992 no álbum Coprólitos, em edição encadernada viabilizada por financiamento coletivo da Catarse.
Quatro anos depois, em 2017, os artistas André Diniz, Batista, Bira Dantas, Camilo Solano, Chico Felix, Al Stefano, Franco da Rosa, Dan Heyer, Doutor Insekto, Daniel Esteves, Lica de Souza, Escape HQ, Galvão Bertazzi, Fábio Zimbres, Felipe Bezerra, Guabiras, Flávio Luiz, Gilmar Machado, Floreal, Ruis Vargas, Thiago Ossostortos, Lobo Ramirez, Luciano Salles, Miolo Frito, Pedro D’Apremont, Vitor Valença, Germana Viana, Kellen Carvalho, Kiko Garcia, Juscelino Neco, Pietro Luigi, Victor Freundt, Paulo Batista, Guilherme Petreca, Tiago Elcerdo, Victor Bello, Laudo Ferreira, Orlandeli, Pablo Carranza, Paulo Crumbim, Raphael Fernandes, Will e Pedro Cobiaco, foram reunidos no álbum Marcatti 40, da Ugra Press, no sistema crowdfunding para também homenagear o ilustrador/desenhista. O trabalho foi premiado com o 30º Troféu HQ Mix nas categorias “Melhor Publicação de Humor” e “Melhor Publicação Mix” (nesta, empatada com Baiacu, de Angeli e Laerte Coutinho).
Em 2018, o reencontro com João Gordo, da Ratos do Porão, para relançar as duas revistas RxDxPx (as revistas de maior tiragem do autor), onde os membros da banda são caracterizados como ratos para vivenciar histórias em quadrinhos hardcore – com roteiro de Marcatti e de João Gordo, as originais, publicadas há 25 anos, são consideradas raríssimos itens de colecionador. Dois novos projetos de financiamento coletivo já estão encaminhados: um deles é Inês e Pedro – Um amor que abalou Portugal, parceria com a professora e pesquisador Libânia Molina de Souza, que é, nada mais nada menos, do que a história da paixão entre Dom Pedro I e Inês de Castro, interrompido de forma brutal com o assassinato de d. Inês com o consentimento do rei de Portugal, Afonso IV, pai do príncipe Pedro I – que culminou no casamento do amante com o cadáver de sua amada e em uma guerra civil no século XIV. Antes, em 2007, Marcatti também dera um tempo no estilo escatológico e adaptara o romance A Relíquia (1887), do português Eça de Queirós (1845-1900), merecedor do Prêmio Angelo Agostini daquele ano. O outro projeto é Frauzio: Esse pode. E, até onde se sabe, trabalha na adaptação de Os Miseráveis, clássico da literatura francesa escrita por Victor Hugo. A HQ, encomendada pela Cia. das Letras, terá mais de 600 páginas.
Bem distante do tempo em que publicou histórias em diretórios acadêmicos da FAAP, a revista Boca, e do Colégio Equipe, a Papagaio, feita por futuros integrantes da banda Titãs, Arnaldo Antunes e Marcelo Fromer, entre outros estudantes. Já no segundo número da Boca se encontram os traços que viriam a caracterizar as próximas produções de Marcatti, ele que nunca gostou de super-heróis ou de ficção científica – gostava mesmo era da francesa Métal Hurlant, mas o grande influenciador foi o estadunidense Gilbert Shelton (1940), dos lendários Freak Brothers, “essa coisa do nariz redondinho, elemento do quadrinho infanto-juvenil, digamos, traço grosso, olho grande”3.
Isso tudo e muito mais pode ser conhecido na biografia escrita pelo jornalista Pedro Luna e publicada em 2015. Marcatti – Tinta, suor e suco gástrico4, da Marsupial Editora (série Recordatório). “Ele é um cara da mesma geração do Laerte, do Angeli e do Glauco, mas que foi por outro lado. O Marcatti desenhava de dia, imprimia de tarde e de noite ia vender os quadrinhos na porta de casas de show alternativas”, disse Pedro, na ocasião; mas, como se sabe, a proximidade fica apenas no que diz respeito à questão geracional. O livro de Luna traz curiosidades, além de resgatar e preservar a história de Marcatti no cenário das HQs brasileiras. Sabe-se, por exemplo, que o ilustrador também é luthier (especializado na construção e no reparo de instrumentos de corda com caixa de ressonância, como o violão). Mas, o que vale para o leitor, é que Marcatti sabe que “o importante é contar a história, isso é o fundamental”. (A partir de GOIDA, 1990; PATATI, BRAGA, 2006; https://www.vice.com/pt_br/article/53mpqa/marcatti-v3n41,2,3; https://oglobo.globo.com/cultura/livros/o-escatologico-dos-quadrinhos-de-marcatti-ganha-biografia-161948114)





Comentários

  1. Os apoiadores do Inês passado 3 anos ainda não receberam os quadrinhos, só pra deixar registrado

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