“O Poeta da Crueldade”, “Podre Pedro”, “Boca do Inferno moderno” e “Bocage pornográfico do século XX”, ele é GLAUCO MATTOSO, ficcionista, articulista, tradutor, produtor de discos de punk rock, letrista formado em biblioteconomia (FESPSP) – o curso e a profissão o “obrigaram” a ter uma “uma cultura enciclopédica”, disse em entrevista à revista Cult (2000) – e letras vernáculas (USP). Por trás de todos esses epítetos, encontramos Pedro José Ferreira da Silva, paulista nascido em 29 de junho de 1951, que adotou o pseudônimo inspirado no glaucoma que tem desde a infância e que o deixa cego nos anos 90 – mas não deixam de ser alusões ao poeta baiano Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, de quem se considera herdeiro na sátira política e na crítica de costumes.
Na década de 1970, quando morou no Rio de Janeiro, alinhou-se ao movimento tropicalista e à contracultura, e aliou-se à crítica cultural ao regime militar (instaurado em 1º de abril de 1964 e legalmente encerrado em 15 de março de 1985), via “poetas marginais”, rótulo que ele procura definir no livro O que é poesia marginal, publicado pela Brasiliense em 1981 (2ª edição em 1982); no período, colaborou com diversos periódicos alternativos (o tabloide gay Lampião e o humorístico O Pasquim, entre eles) e da chamada grande imprensa (Jornal da Tarde, por exemplo), além de dedicar-se à profissão de bancário.1 Também neste período integra grupos ativistas ligados ao movimento Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (LGBT), como o Somos (grupo fundado em 1978, considerado o primeiro no Brasil em defesa desses direitos).
A estreia na poesia foi em 1975, no livro coletivo Apocrypho Apocalypse. Até os anos 2000 publicou mais de 50 títulos de poesia, ficção (A Planta Donzela, 2005, romance que subverte o amor romântico de José de Alencar em A Pata da Gazela, publicado em 1870) e ensaios (as memórias ficcionalizadas em Manual do podólatra amador, 1986; O que é tortura, para a Coleção Primeiros Passos, da Brasiliense, em 1994), um tratado de versificação e um dicionário ortográfico, além de organizar antologias e fazer crítica literária. Em depoimento no ciclo Artes e Ofício da Poesia (MASP, 1990), ressaltou que a prosa que produziu é “quantitativamente maior que a poética”, mas o que ficou foi o rótulo de “poeta”, embora muitas vezes com o uso do ponto de interrogação em seguida. E sobre as críticas que recebeu (ou distorções de seu trabalho), respondeu: “Minha intenção era desorientar o observador, inclusive pela fraude (citações apócrifas misturadas a transcrições autênticas; adulteração do erudito através do chulo & vice-versa; poemas ‘puros’ ou autoconsistentes camuflados na mixórdia dobrabilesca) e pelo clima de brincadeira inconsequente. Se a crítica se desorientou, acertou. Se não perdeu de vista seus parâmetros, também acertou” (in MASSI, 1991, p. 169).
Sua poesia é de difícil enquadramento e circula por um público restrito, embora reconhecida pela crítica. Ela associa-se tanto às experimentações vanguardísticas dos poetas concretistas quanto à coloquialidade da geração dos poetas dos anos 70, no qual se inclui, entre outros, Cacaso (1944-1987) – que reconhece a capacidade que Mattoso tem de incorporar as formas tradicionais, como o soneto camoniano, com a pornografia e a liberdade absoluta: “Glauco Mattoso configura um caso à parte em nossa poesia: ele pega um pouco de tudo, come de tudo, bebe de tudo, prova de tudo. E desconfia de tudo. Pratica todas as técnicas de vanguarda, faz poemas concretos, poemas-processo, práxis, trocadilhos, grafismos, jogos datilográficos, palavras cruzadas. Mas também escreve poemas como qualquer outro poeta, com um verso depois do outro, tudo correto e bem trabalhado. Usa de tudo e não se prende a nada. Glauco satiriza tanto a falta de seriedade quanto a falsa seriedade: aí entram as vanguardas, o homossexualismo, as contribuições alheias, as ideologias, seu próprio trabalho. O poeta mete a língua na vida alheia, na língua alheia, na obra alheia, na dor alheia e na própria dor. Glauco Mattoso é uma espécie de espírito maligno da poesia brasileira, que veio para avacalhar com a compostura e com a própria avacalhação, e para dar dignidade à dignidade e à sua falta” (in MASSI, 1991, p. 164).
Nos anos 80 publicou em revistas como Chiclete com Banana e SomTrês. Em 1981 encerrou um ciclo iniciado em 1977, quando fez circular um fanzine poético-panfletário, o poezine Jornal Dobrabil, com o formato dobrável dos folhetos satíricos (que foi reeditado de forma fac-similar em 2001), em que faz uma colagem de textos próprios, plágios deliberados e imitações de notícias de jornal2 e, em 1982, editou a Revista Dedo Mingo, suplemento do Jornal. Sobre o poezine, comenta: “Eu tinha uma frase no Dobrabil que dizia: ‘Original é quem plagia primeiro’. Aí é que está a armadilha. O que eu fazia no Dobrabil aparentemente era uma defesa explícita do plágio. Na verdade, eu estava fazendo essa paródia clássica, essa releitura crítica. [...] O que eu fazia não era mero pastiche. Havia uma proposta formal, fisionômica, que era o datilograma, e havia uma proposta conceitual, que era a de retomar a antropofagia oswaldiana num contexto contracultural, pós anos 60, um contexto de drogas, sexo e rock’n’roll, de fanzine, de pós-concretismo, de pós-tropicalismo. Embora não houvesse a palavra pós-modernismo nos anos 70, assim como não havia a palavra fanzine, eu estava fazendo um fanzine pós-moderno” (in CULT, 2000).
No final dos anos 1990, depois de quase dez anos longe da poesia, realizou o projeto de publicar mil sonetos, dedicados a temas variados, como política e impressões sobre a cidade de São Paulo. Em parceria com o professor Jorge Schwartz, da Universidade de São Paulo (USP), ganhou o Prêmio Jabuti pela tradução da obra inaugural de Jorge Luis Borges (1899-1986), Fervor de Buenos Aires, em 19993 – além do fato de terem sido bibliotecários e cegos, há uma terceira coincidência entre o argentino e o baiano, segundo ele mesmo: o misticismo. “Minha postura é a de observar o equilíbrio de forças entre bem e mal, forças obscuras e forças iluminadas; sou um observador participante dessas coisas. Vivo mais intensamente as contradições do que Borges. Ele talvez tenha se apoiado mais em determinadas forças e se engrandecido mais. Eu não. Estou numa posição muito neutra, muito menor. Observo mais este antagonismo”, disse a Fabio Weintraub (2000). Ao perder completamente a visão, deixou de lado a criação gráfica – as histórias em quadrinhos e a poesia concreta – para se dedicar à escrever letras de música e à produção fonográfica. “Antes de 2012 eu compunha até dezenas de sonetos por dia e sempre tinha algo já memorizado a ser digitado ou aprimorado. Atualmente, apenas reviso a ortografia dos arquivos que ainda estavam na redação original, anterior a 2009, além de um ou outro poema novo. Já não trabalho com textos teóricos, concluídos que foram o tratado de versificação e o dicionário ortográfico. Também já não escrevo ficção, publicados que estão meus romances e volumes de contos. Já não colaboro com crônicas para alguma coluna virtual em sites alheios [...]. Resta mesmo a poesia, mais sintética mas que exige mais atenção a cada palavra”, comentou em entrevista para José Nunes4.
Sobre o modo de escrever sonetos, que muitas vezes ocorre quando acorda no meio da noite, assustado, confessou a Weintraub: “O mais curioso de tudo é que, depois de ter composto todo o soneto na cabeça, vem um lance borgiano. Eu consigo ‘salvar’ isso na cabeça, da mesma forma que se ‘salva’ num arquivo de computador. [...] É claro que há sonetos que, mesmo depois de ‘salvos’, eu modifico no computador. Ou sonetos que eu não completo durante uma noite. Fica faltando alguma coisa, um terceto, um verso no meio etc. Aí eu salvo o que já está pronto, deixo uma lacuna mental, depois digito e fico estudando um meio de completar aquilo. Mas são exceções. Em geral, a coisa se desenvolve de uma forma mais solta.” Recentemente voltou a escrever poesias e textos para a internet, para revistas eletrônicas e impressas, como a Caros Amigos. Seus temas, desde o início, se caracterizam pela exploração de temas polêmicos, como a violência e a discriminação, em forma de sátira, fescenina, que abusa da pornografia e da escatologia. No aspecto linguístico, incorpora as gírias suburbanas e os neologismos culturais da segunda metade do século XX em seus sonetos decassílabos heroicos. “Difícil não nos é fazer humor; difícil é deixarmos de fazê-lo. E como diziam os velhos trovadores, não é difícil ser poeta: ou é muito fácil, ou é impossível”, disse para Nunes5.
Pela coletânea de sonetos Saccola de Feira (2014) recebeu o prêmio Oceanos 2015, mesmo ano em que publicou Poesia Vaginal: Cem Sonnettos Sacanas. Consta, ainda, que já escreveu mais de cinco mil sonetos. Caetano Veloso o cita na música “Língua” (do disco Velô, 1984), ao lado de Arrigo Barnabé e Chico Buarque. Seu trabalho é objeto de estudos na América Latina e nos Estados Unidos e, aos poucos, é descoberto pelos universitários europeus. É o tradutor de A Bíblia Skinhead – Espírito de 69, de George Marshall (Spirit of 69’ A Bible of Skinhead). Hoje, ao lado do companheiro, sente falta que leiam para ele, em voz alta, uma história universal da cegueira, “que não omita tantos olhos vazados nos prisioneiros de guerra escravizados em tantos séculos de ‘civilização’, a exemplo de Sansão no Velho Testamento, que obviamente não foi caso isolado. Na falta de tal livro, compus eu mesmo uma releitura daquela alegoria, em forma de narrativa sonetística à maneira de Milton no Agonista. Continuo aguardando a contribuição de algum autor melhor que Saramago, o que não será lá muito difícil de suceder”6. (A partir de MATTOSO, 1982; in MASSI, 1991; in WEINTRAUB, revista CULT, novembro de 2000; http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa4836/glauco-mattoso1,2,3; https://comoeuescrevo.com/glauco-mattoso/4,5,6; http://www.poesiaprimata.com/category/glauco-mattoso/; https://pt.wikipedia.org/wiki/Glauco_Mattoso)


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