Foto Marcelo Bonvicino
O paulista RÉGIS
BONVICINO nasceu no dia 25 de fevereiro de 1955. Entre 1975, quando
publicou Bicho Papel – que tinha a
ditadura como tema principal – e 2013, com Estado
Crítico, o poeta traduziu, entre outros, versos de Oliverio Girondo,
Charles Bernstein, Robert Creeley e Michael Palmer, além de reunir poetas
contemporâneos chineses em Um barco
remenda o mar (2007), dar atenção às crianças (Num zoológico de letras, 1994),
e divulgar para o mundo a poesia brasileira, com a coletânea Nothing the sun could not explain/ 20
contemporary Brazilian poets, organizada com Michael Palmer e Nelson Ascher
(1997), com duas edições esgotadas.
Para 2020 está prevista a publicação de A nova utopia, mas o leitor-ouvinte pode
conhecer Deus devolve o revólver, o
álbum sonoro com 20 poemas inéditos e outras interpretações, com leituras de Caroline
De Comi e Charles Bernstein, gravado entre março e julho de 2019 e disponível
nas plataformas virtuais – em 2016, o poeta reuniu poemas do livro Estado Crítico e do novo, “Fontspício” e
“Tempus fugit”, em uma exposição no Rio de Janeiro, com curadoria de Alberto
Saraiva.
Influenciado pelo neorealismo do cinema italiano (Rosselini, Fellini e Antonioni), Bonvicino é m poeta
do corte seco, definiu seu trabalho em entrevista para Jonas (J) Magnusson, da
revista sueca OEI e republicada na revista Sibila
(outubro de 2019), do qual é editor (leia mais em sibilia.com.br/cultura/criticalidade-e-vertigem-uma-entrevista-de-regis-bonvicino/11190):
“Eu nunca sento e escrevo um poema inspirado. Não é uma poesia de meu
escritório, de minha escrivaninha, mas do meu andar, conversar, sentir,
observar, pesquisar, retrabalhar... Leva-me muito tempo, escrevo, reescrevo,
pois procuro ser muito preciso, escrever poemas de forma muito precisa.”
* * *
A nova utopia
A
nova utopia é uma borboleta negra, desatenta, com olhos exuberantes. A nova
utopia é a favor da proteção implacável dos animais. A nova utopia é inclusiva,
participativa. A nova utopia é o coro afinado dos descontentes. É um
ex-guerrilheiro, de porte avantajado, homem forte do governo. A nova utopia tem
informações privilegiadas, disponíveis. É um ex-leproso. A nova utopia rechaça
a figura de Nossa Senhora se masturbando. A nova utopia defende os direitos das
trabalhadoras do sexo. A nova utopia comunga, com moderação, ideais
materialistas. A nova utopia morre de pé. É, ao mesmo tempo, um duty free e um
detox financeiro. A nova utopia é nosso dever como cidadãos. A nova
utopia exalta a sustentabilidade das empresas. A nova utopia sabe que se pode
ser árabe e muçulmano, árabe e não muçulmano, muçulmano sem ser árabe. Negro
sem ser branco, branco sem ser negro. A nova utopia é a liberdade de expressão
do Le Monde, reassegurada desde sempre. A nova utopia é um ajuste de contas
contra o obscurantismo dos outros. A nova utopia rejeita factóides
politicamente úteis. A nova utopia é um pouco xiita, apenas quando estritamente
inevitável. É um turista americano visitando o Museu Abu Ghraib. A nova utopia
tem logo e slogan. Condena chacinas na periferia. A nova utopia emite
notas de repúdio, lança abaixo-assinados; defende o grafite; a nova utopia
prega a bicicleta. A nova utopia é o respeito incondicional ao nanismo. Condena
corruptos. É um ex-ladrão. Tem seu próprio dicionário. Pensa antes de agir.
Repele palavras e pede ação. A nova utopia é um ex-coxo. É a asa aberta do
voo. É um showroom de exuberâncias naturais. É um céu com nuvens negras,
sob controle. É uma estante de livros num banheiro. É a viúva de Jorge Luis
Borges detalhando seu processo de criação. A nova utopia é um ex-macumbeiro, um
ex-bêbado, é um ex-exu sujo. É um branco de alma preta. A nova utopia é ainda o
indígena de tocheiro, fazendo política, diariamente, nas redes sociais. A
nova utopia é uma ex-esteticista de unhas postiças. É um espião trans pegando
sol num roteador. É um ex-selvagem. É uma ex-vadia. É um ex-puto. É uma entendida.
É um ex-pária. É uma miríade de franquias de poetas premiados. É um poema à
altura de seu tempo.
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