Cena da última parte do filme Sonhos,
do cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998)

Pânico na aldeia!

As incertezas nos fazem acordar em uma “terra estranha”

Sonho 1
Ao caminhar pela cidade, sentia meu corpo e meus sentidos em harmonia com ela.
Mesmo com as calçadas mal-cuidadas, as pessoas indiferentes e o trânsito esquizofrênico, que provocam inconvenientes desvios de rota e de atenção; mesmo sem encontrá-la.
Fiquei sabendo do pardal de coroa branca, que voa sem dormir e, ainda assim, ao fim da migração, chega ao seu destino; em pobre analogia, ligo os pontos urbanos a fim de compor meus destinos cotidianos mesmo depois de poucas horas de sono, sem me preocupar em ser um consumidor e/ou gerador de riqueza durante as 24 horas do dia, os 30 dias do mês.
Em tempos doentes, de tecnovigilância, animosidades e de terceirização da produção, é temerário o caminhar pela cidade – pode parecer provocação ante aqueles que, assoberbados com as urgências monetárias, esquecem do trivial e tropeçam nos invisíveis que os cercam.

Sonho 2
É incrível a sensação do estar em movimento pela cidade, e torna-se ainda mais mágica e misteriosa quando conseguimos nos libertar de alguns condicionamentos; quando conseguimos estar por aí, à toa – como se em outros tempos, em outras vidas, em outros lugares; passado, presente e futuro.
Temo que a cidade me esqueça, mas, ao mesmo tempo, quero crer que as palavras que inscrevo no cotidiano sobreviverão à falta de memória, à falta de hábito, à uma reinterpretação; ou, pelo menos, que sirvam agora para exercitar e exercer a melopeia em um mundo hiper-real, em que se acentua a complexidade e a heterogeneidade, e às vezes é tocado pela poesia.
Penso no filme Sonhos, de Akira Kurosawa, e revejo a mensagem de esperança na última parte dele, “O vilarejo dos moinhos”, onde a noite não ser precisa ser tão clara a ponto de ofuscar as estrelas e o que importa é ter água limpa; lembro do livro-relato que tem o mesmo título, que emprestei a uma amiga, anos atrás, e que não me foi devolvido; espero que ela ainda o tenha, espero que ela o releia de vez em quando, desejo profundamente que o livro ainda a encante.
É um sentimento que gosto de preservar.
Mas é preciso esquecer, dizem, romper com o passado para poder prosseguir, habitar terras estranhas e tornar a se reconhecer.
Mesmo que se saiba a diferença entre imaginação, sensação e opinião, ainda que flutuemos entre a realidade e irrealidade, o fazer poético traz a sensação da agoridade – e o presente primordial se desfaz, de forma ininterrupta e profundamente.

Sonho 3
Realmente, parece que estamos em uma terra estranha.
Vemos a natureza renascer em diferentes pontos do planeta, enquanto o homem, que também faz parte desta natureza, mais uma vez dá mostras de sua incompatibilidade.
Resiste à harmonia.
Que pode ser divina, que pode ser econômica, que pode ser filosófica, que pode ter tantas interpretações quanto possíveis forem a vontade de se adaptar e compreender e saber fazer.
Este tempo presente, que se desfaz, de forma ininterrupta e implacável, que, conforme a perspectiva, falta tempo para entendê-lo,
As perspectivas indicam um mundo novo, embora pareça que não exista a possibilidade de um mundo-sem-mal, como querem alguns – existem sinais, isso sim, de que, de repente, parados diante de algum portal temporal, a decisão a ser tomada [não] garantirá o melhor para todos.
É difícil pensar além, pois o desequilíbrio de forças, de emoções e de pensamento que se instaurou em todas as esferas de poder, abaladas por uma crise institucional que parece não ter fim, acaba por nos manter em discursos que giram em nossas cabeças e ricocheteiam como balas perdidas nas paredes de casa.
Fala-se de tudo e do jeito que se quer, com a intensidade no que se acredita, quase sem freio. E, mesmo sem querer ou dar-se conta, quebramos as regras da civilização e perdemos a humanidade a cada palavra dita e escrita sem interdição – no que se refere ao “necessário discernimento”.
Até há pouco, havia tempo, alguma noção, talvez “nada” a perder – e agora?
Pânico na “aldeia global”!

Sonho 4
Enquanto interferências e onomatopeias e inspiração, sinto falta da cidade física, e não tenho certeza se ela sente o mesmo por mim e do meu silêncio.
A poesia que ora escrevo, de forma intermitente, além de pouco dialogar com outro leitor, também não conversa com as esquinas e com os prédios e com as pessoas que deixo de encontrar enquanto caminho e faço versos, e, por isso mesmo, me parece sem sentido.
No momento, o mal que habita entre nós desacomoda e o mundo que conhecemos se mostra cada vez mais finito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog