Foto:
Paolo Barzman
Cinco instâncias e algo mais
Em tempos de pandemônio, ternura
e resistência
Tempo, Olhar
Se o mundo é uma construção
coletiva, então, trabalho é que não falta, o que falta, me parece, é tempo.
Tempo para abraçar os
familiares e os amigos – os que não compactuam com a barbárie.
Um olho no prumo, outro na
curva.
Tempo para rever fotografias
e projetar o reencontro possível.
Um olho fechado, outro em
perspectiva.
Tempo para organizar os LPs
espalhados pela sala há mais de semana, resultado daquela manhã em que “baixou
o santo da limpeza” e, logo depois, a preguiça.
Um olho na tela, outro na
nuvem.
Tempo para ler o que eu
havia deixado para ler quando me aposentasse.
Um olho raso d’água, outro
brilhando.
Tempo para dizer “eu te
amo”, como nunca disse antes.
Um olho apaixonado, outro à
distância.
Pensar, Sentir
Se o mundo é uma construção,
então, filtremos as opiniões.
Pensar diferente não é
pensar errado (embora a tolerância esteja à prova!).
Sentir que ainda será
possível um mundo melhor.
Pensar que se pensa
impunemente é engano.
Sentir saudade, sem
reprimi-la ou deprimir-se.
Pensar que o conhecimento é
inabalável é quimera; que o cargo ou a função exime do compartilhamento da
decisão é bravata.
Sentir que alguém espera,
sentir que esperamos alguém.
Pensar que o pensamento é só
intuitivo ou discursivo, ou mental ou espiritual, ou exercício do intelecto em
oposição à vontade e aos sentidos, é reduzir a força do pensamento.
Sentir a poesia que a
estação oferece.
Pensar é livre pensar.
Sentir o vento, mesmo com a
janela fechada, sentir o sorriso por trás das máscaras.
Pensar que a vida que
planejamos pode não ser a vida que nos espera.
Sentir que vai dar pé!
Ler
Se o mundo é uma construção afetiva,
antes é preciso reconhecer a si mesmo – quem sabe, pela leitura.
Ler o mundo é voltar ao
capítulo inicial, afinal, o mundo dá voltas, ao contrário do que afirmam os
sequelados.
Ler o erro, e compreendê-lo,
para não adiar a prova da realidade.
Ler nas entrelinhas, para entender
o que devia ou o que podia ser dito.
Ler, nos arquivos mortos da
memória, os sonhos que esperavam o seu tempo – os olhos bem abertos!
Ler a palavra criadora,
assim como é a imaginação.
Ler o (que dá) medo, para não
superestimá-lo, sequer subestimá-lo.
Ler o momento, que está mais
para a transmutação do que para a transformação imediata.
Ler bilhetes, cartas e
poemas de amor, adiados demais, e aceitar que não dá mais para evitá-lo, um
olho de olho no outro.
Ler para não ser perturbado
com o desastre do mundo em convulsão, um olho no horizonte, outro por onde
pisa.
Ler para compreender melhor
o ambiente ao nosso redor e as pessoas que habitam em nós.
O
que somos, quem somos
Sobre o capital cultural, o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) tem a seguinte
interpretação, “Não se adquire nem se herda sem esforços pessoais,
sem um longo trabalho de aprendizagem e de aculturação; tende a ser
estreitamente correlacionado ao capital econômico do agente.”
Ações político-governamentais de amparo à classe artística são mais do
que necessárias e, quando propostas não diminuem o comprometimento social dos
poderes que regem a sociedade; infelizmente, são exíguas e insuficientes, num
jogo de empurra em que ninguém assume o protagonismo.
Ações político-governamentais que permitiriam o acesso de todos ou da
maioria ou de quem quer que se interesse não deveriam ser barganhadas em troca
de voto de cabresto ou da submissão ideológica.
Reafirmar que os tempos são tristes é inevitável, embora
não goste de ver a afirmação tão presente no meu repertório de observações do
cotidiano.
O país que conheci e que aprendi a gostar a partir de uma
série de referências leves, lindas e soltas, e soterra as boas lembranças que
guardamos em algum lugar de nossos espíritos flâneurs, desaparece ao entardecer – mas reencarno diariamente
junto com o sol, mesmo que encoberto pelas nuvens, procurando manter-me
distante de um antropocentrismo infantiloide.
Um pouco mais sobre isso
Por isso, sentir – a fonte de emoções de cada um não pode
nem deve ser represada, sob o risco de termos bloqueadas nossas afeições;
sentir nos permite a autonomia espiritual nas questões essenciais do cotidiano
do ser.
Por isso, olhar – “Cada pessoa é um olhar lançado ao
mundo e um objeto visível ao olhar do mundo”, escreve Leyla Perrone-Moisés, no
artigo “Pensar é estar doente dos olhos”.
Por isso, pensar – são tantos os apelos visuais que a
mente se confunde; ditado antigo: “Come-se pelos olhos.”
Por isso, ler – a leitura contribui para reforçar nossa
inteligência.
Barthes: “[...] o texto destrói até o
fim, até a contradição, sua própria
categoria discursiva, sua referência sociolinguística (seu ‘gênero’)...”.
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