Reprodução de uma HQ do Dylan Dog, personagem de Tiziano Sclavi
EXISTE
UM ANTES E UM DEPOIS?
Da culpa, do pecado e da isenção
TEMPO
1
Inaceitável: algo além da razoabilidade, algo que até
determinado momento era razoável.
Tenho ouvido e lido muito essa palavra.
Em sua dinâmica, as palavras se incorporam ao vocabulário
das pessoas.
Cumprem a sua função de externar sentimentos, sensações e
emoções, positivas e negativas.
Afirmam ou negam ou, ainda, enganam, os outros ou a si
próprias.
São cruéis para além de sua materialidade.
Quando caminhava por aí, de olho nos buracos das calçadas
e na desatenção das pessoas, procurava por sinais/evidências de um mundo mais
tranquilo, em que a poesia pudesse prevalecer como a voz encantatória da
consciência e provedora de beleza.
A ilusão é algo que alimenta nossa esperança, mas também
tem como propósito desviar nossa atenção.
Assim é na política, assim é na economia, assim é nas
relações, assim é diante do espelho.
Assim é, simplesmente, pois não temos como evitar – ela
existe mesmo que reconheçamos sua inexistência, diferentemente do erro.
Em alguns casos, a poesia não tem espaço; só a
consciência do erro ocupa este lugar.
TEMPO
2
Escrevo isso a partir do que leio e que tenho escolhido ler
para entender o momento em que vivemos.
A tragédia é clássica, pois quem escolhe o destino dos
comuns continua sendo “os da parte de cima”; corpos são empilhados em
proporções exponenciais e a humanidade se depara, em seu momento histórico, com
o seu maior problema: ela mesmo.
Enquanto alguns afirmam que podemos resolver o problema
equacionando as diferenças sociais, outros acreditam em soluções espirituais;
enquanto uma parte ainda aposta no poder econômico (incluindo aqueles que não
reconhecem o erro), outros permanecem indecisos entre a verdade e as possibilidades
sobre o fim de um ciclo.
As últimas semanas têm sido tensas, embora a tensão seja
imanente à existência; o final é que se apresenta infeliz e funéreo – uma
catarse que nos levará a um novo modo de vida ou uma purgação que nos levará a
aprofundar os piores sentimentos (no que é possível ser diferente?).
TEMPO
3
Somos instigados a não ter culpa; ao mesmo tempo, em
conflito, somos assediados com mensagens em texto e imagens, em preto e branco
ou coloridas, que, por vezes, nos tiram da zona do conforto.
Há várias maneiras de mitigar a dor da culpa; uma delas é
realizar ações que possam ser compartilhadas em benefício de todos; fala-se em
pensamento positivo, fala-se em limpeza de chacras, fala-se de exercícios de
respiração e controle da mente; fala-se em poesia e em exércitos de salvação –
todos querendo encontrar pontos em comum.
TEMPO
4
O problema talvez esteja no falar sem nada dizer; ou
fazer.
Aliás, temos também o hábito de falar mal de quem faz,
talvez por ser mais cômodo, talvez por inveja ou, quem sabe, por aliviar nossa
consciência e eliminar a culpa que carregamos, que não tem a ver com o pecado,
já que este foi estabelecido pela teologia cristã, enquanto aquela pode ser
enquadrada juridicamente.
Mas a culpa também é involuntária, é essencial à
existência humana, dizem; embora sempre nos coloque em situação-limite.
TEMPO
5
Podemos conversar sobre entrelaçamento histórico,
protecionismos, mercados à beira do abismo da terra plana, cercadinhos
políticos; podemos minimizar e até menosprezar o Efeito Borboleta de Lorenz;
mas também temos a liberdade de comentar, escrever e pensar sobre um efeito sem
a causa estabelecida – tudo, enfim, pode derivar da aleatoriedade da vida.
E, por falar em liberdade, também considero que só serei
livre quando todos os seres humanos que me cercam forem igualmente livres,
lembrando o que escreveu Bakunin. “A minha liberdade pessoal, assim confirmada
pela liberdade de todos, estende-se até ao infinito”.
Defina-se como quiser, defenda-se como puder.
Em meio a processos trabalhistas e sociais – a
uberização, o uso de inteligência artificial, a automação do trabalho –, o
indivíduo se encontra em um mundo orwelliano de controle e ressocialização.
O que se descortina diante de nossos olhos e mentes é uma
nova realidade, distante das projeções daqueles que, até bem pouco tempo atrás,
estavam satisfeitos em consumir enquanto outros se preocupavam em sobreviver.
Inaceitável é não entender que ainda há pouco algumas
coisas eram aceitáveis.
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