Detalhe do tríptico “O jardim das delícias terrenas”, de Hieronymus Bosch.
Fonte: filmforum.org/film/hieronymus-bosch-touched-by-the-devil-film


PARA SEMPRE OU NUNCA MAIS

Pensar na finitude amplifica o prazer dos pequenos gestos

Sombra 1
Entre as primeiras leituras, a revista Casa e Jardim, que trazia plantas baixas de imóveis; inspirado, traçava capengas projetos e erguia paredes de sonhos improváveis, onde me refugiava em silêncio.
O tempo passou: encontros e desencontros, encantos e desencantos me constituíram e aqui estou: o tempo cumpriu suas prerrogativas ao seu bel-prazer e mudou minhas expectativas.
Um novo livro acaba de sair do prelo e as caixas ocupam o corredor do apartamento e minhas “caixinhas” emocionais.
No momento, habito e divido o espaço com estes e outros livros; e fantasmas e plantas e discos e sonhos, mas percebo que nossa finitude – deles, minhas e nossas – é que nos une.

Sombra 2
Não sei bem se a ideia do “para sempre” chegou a firmar-se em meu íntimo; lembro de versos do poema “Meio-dia do inverno”, do segundo livro, Um olhar sobre a cidade e outros olhares: “o vento venta/ venta/ e reinventa/ o mar.”
E neste oceano de basalto recoberto de asfalto sobre o qual caminho sob fios telefônicos e entre pessoas, continuo a erguer, senão catedrais, palafitas.
Não realizei o sonho da arquitetura; fui reprovado no vestibular e o sonho juvenil foi arquivado; meus diplomas são da área de Humanas, e faço uso das palavras para dar concretude ao meu sentimento, ao meu afeto, ao meu carinho; às minhas impossibilidades e aos sonhos reconstruídos – faço arquitextos.
Aprecio o vento que de vez em quando embala as folhas soltas nas calçadas e balança minhas certezas; me encanto com as tempestades, embora respeite-as e não deixo de me comover com os estragos que ela deixa.

Sombra 3
É preciso estar sob a luz das lâmpadas para operar no espaço aberto; mas, quando tudo é virtual, quase tudo é obscuro.
Pós-abissal, meu olhar agora se depara com o que parecia ser o fundo do abismo de um país, de uma sociedade.
O momento histórico do qual participo deixará fissuras no asfalto e nos corações, para além dos relatos impressos em jornais, revistas e livros.
É curiosa a sensação de estar no olho do furacão – uma coisa é puxar pela memória e estudar, fazer pesquisa e trocar ideias sobre episódios que inscreveram-se na linha do tempo da civilização; outra, é fazer parte e não ter a dimensão do gesto a noção da palavra certa o tamanho do passo a ser dado.
O futuro é incerto e o que eu não fiz até agora talvez não tenha oportunidade de fazer: abraços beijos sexo palavras.
As ruas de minha cidade de origem ocupam um mapa na minha memória; pequeno, mas renitente em sua tentativa de resgatar o que as camadas de meu esquecimento encobriram.
Era para ser assim?

Sombra 4
O mundo contemporâneo inaugura novos lugares de maneira insistente; veloz; em diferentes níveis de profundidade dada a multiplicidade de gestos e reações.
É preciso, na mesma velocidade, novas constituições poéticas que permitam assimilar estas epidermes urbanas e tecnológicas, humanas e sensíveis.
Futuro, palavra camaleônica, às vezes se parece como o caminhar em direção a um beco sem saída, em que o caminhante reluta em reconhecer que o trajeto será interrompido, tudo tão cinza, tudo escuro, a luz das ruas incidindo fracamente.

Sombra 5
A utopia da integração se estilhaça, pois não vigora frente às assertivas da iniciativa privada e da intolerância religiosa.
Distante da origem, não percorro as ruas da cidade em que vivo de olhos fechados pois tenho medo de pisar em falso, de não poder evitar os encontrões, de, no meio-fio, ser tolhido por um automóvel em pleno voo da minha distração.
A ideia de pós-verdade - quando o apelo à emoção e às crenças pessoais ao transmitir algo é mais importante para gerar credibilidade do que provas de sua veracidade - é aqui aplicável, como em todo o seu mandato.
A narrativa não rompe totalmente as conexões com a realidade, mas deriva, na busca da utopia entre a vida e arte.

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