Foto Mohamed Fawzy/Internet


INFLEXÕES

Mergulho no mundo para me manter à tona

Isola 1
A volta à normalidade talvez seja o maior desejo que as pessoas guardam em seus corações nestes dias de catástrofes sócio-ambientais e pandemias que dizimam indiscriminadamente.
O debate se instala em torno do que se trata essa “normalidade”; defende-se os padrões a que estávamos acostumados, são previstas novas formas de relacionamento... o que não ficou claro, pelo menos para mim, é até que ponto haverá disposição para entender que, efetivamente, “nada será como antes amanhã”.
O que sei é que o ponto de inflexão em que nos encontramos é determinante para o futuro das sociedades – quero acreditar que nos próximos anos olharemos para o passado e voltaremos a sorrir, pois, mais sábios, teremos aprendido com os erros, talvez não nossos, individuais, mas nossos, como sujeitos de uma coletividade que, em algum lugar da história, procurou defender a verdade frente ao poder econômico, à sexualidade, à posição social ou à raça, mesmo que esta noção seja rejeitada por ser a proximidade cultural mais importante que a questão racial (pelo menos, afirma-se, etnologicamente).
O mal está banalizado e, embora seja associado ao nazifascismo, não se esgota nesta nefasta prática histórica; o sociólogo Noam Chomsky afirmou, em recente entrevista, que “estamos correndo para o desastre, algo muito pior que qualquer coisa que já aconteceu na história da humanidade”.
Meu desejo é que ele esteja errado...

Isola 2
Parece que às vezes é melhor não estar consciente em demasia das coisas que acontecem; abandonar as lembranças de todas as coisas finitas, tornar-se um estranho para si mesmo, como se fosse suficiente naturalizar um monte de coisas que veio antes e um monte de coisas que estão por vir, enquanto não sabemos lidar com um monte de coisas, reais ou imaginárias, ao nosso redor no tempo presente.
Há espanto, há dúvida, há medo e há desprezo por quem se espanta, por quem apresenta dúvidas e por quem tem medo.
Racionalmente, se quer tomar partido da continuidade da vida como se o que está ocorrendo fosse apenas um “acidente de percurso”; há quem afirme que é.
Lembro de uma passagem no livro Walden ou A vida nos bosques, de Thoreau, em que, logo no começo de seu ensaio, ele considera: “A vida que os homens tanto prezam e consideram como bem-sucedida é apenas uma entre outras.”
A finitude nunca esteve tão próxima, assim como, pelo menos no curto período de minha existência, tanto escárnio e tanta indiferença – as vozes que se alteram e se alternam confundem o momento histórico que vivemos.
Mas, prefiro viver a plenitude da vida ainda hoje, mesmo com as restrições que se impõem.

Isola 3
O filósofo francês Guillaume Le Blanc, autor de Doenças do homem normal (2004), estuda os limites entre a vida decente e a normalidade, e reflete sobre a inclusão precária do ritmo de vida cotidiana nas normas que conhecemos; ou à que estávamos acostumados.
Sobre esta normalidade que tanto se quer, a convergência de opiniões é praticamente impossível, considerando que se trata de um conceito dinâmico que depende de uma série de fatores para que se possa aceitá-la como definidora de algo que contemple a todos; por seu caráter relativo, por ser identificada em pelo menos três níveis (orgânico, fisiológico e psicológico), a normalidade parece estar mais para um objetivo do que para uma conclusão sobre a forma de ser e estar da humanidade.
Todas as atividades do indivíduo, mesmo que este não se dê conta, estão em constante mudança, de forma natural e inata – mesmo quando estamos deitados no sofá assistindo a um filme e comendo pipocas por opção, mesmo quando estamos confinados obrigatoriamente, comendo pipocas e assistindo a um filme.
Enquanto isso, podemos pensar sobre a não-ação taoísta e deixar a natureza seguir o seu curso, com sua “sabedoria intrínseca”, ou nas ações anarquistas de Proudhon, expandidas por Bakunin, desde que entendendo a essência do termo: a supressão total do Estado e a eliminação do capitalismo.
São as tais inflexões da quarentena...

Isola 4
A industrialização, que fez a roda da economia girar e fez surgir cidades e, nelas, as comunidades, também contribuiu para tornar a vida monótona.
Em cidades industriais surgiram bandas de rock, surgiram poetas, surgiram ambientalistas “infiltrados” nesta aparente normalidade de crescimento social e econômico; criaram-se fissuras que acentuaram a incompetência de um desenvolvimento alijado do cuidado com as coisas naturais, que passou a incomodar todos os tipos de vida que cohabitavam onde os parques industriais foram instalados.
De repente, os cenários de progresso deixaram de satisfazer as necessidades mais básicas da vida e passaram a ser ocupados pela falsidade e pela demagogia; sem se dar conta, o indivíduo assimilou, em maior ou menor grau, tudo o que o ambiente lhe proporcionou, e é inequívoco o “sereno desespero” que já o corroía antes mesmo deste pandemônio que hoje vivemos.
Aliás, não é de hoje que vivemos uma guerra invisível, contra tudo e contra todos, em nome da sobrevivência – enquanto para alguns, itens necessários estão distantes e são desconhecidos, para outros, o supérfluo é banalizado.
E o subjetivo que uma vez parecia ser transmissível, como a experiência de vida, hoje fica difícil manter como afirmação, inclusive diante do que presenciamos e por entendermos melhor que cada vida é uma experiência única, mesmo que alguém possa pretender pensar por nós – o que é extremamente desconfortável e abjeto.

Isola 5
Não há como, em sã consciência, acreditar em um mundo melhor, talvez por isso aqueles que acreditam não são considerados “normais”.
Enquanto seguimos em uma jornada rumo ao nada, bordão que se repete, aguardando que as soluções políticas resolvam nossos problemas e eliminem nossas angústias, quem está no comando joga uma pá de cal sobre nossas esperanças num discurso inflamado e populista; e o que é pior, escancarando intenções que, particularmente, me aterrorizam.
Enquanto escrevo, de certa reorganizo meus pensamentos e meus afetos, me distancio destes horrores e, ao mesmo tempo, mergulho nas palavras para, quem sabe, encontrar vestígios de uma Atlântida ainda não corrompida pela avidez humana.
A trilha sonora para a semana que passou tem Sid Vicious cantando “No future” e as palavras de Chomsky reverberam; mas há que permanecer o encanto...

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