Um polímata brasileiro. Assim GILBERTO DE MELLO FREYRE, que estudou muitas ciências, que dedicou-se à ensaística da interpretação do Brasil sob ângulos da sociologia, antropologia e história. Gilberto Freyre nasceu no Recife em 15 de março de 1900. Também escreveu versos, entre eles os de Bahia de Todos os Santos e de Quase Todos os Pecados, publicado em Talvez Poesia, de 1962, considerado por Manuel Bandeira (1886-1968) como "um dos mais saborosos do ciclo das cidades brasileiras", e, por ele, o resultado de um "aprendiz de poeta".
Aos 18 anos viajou para os Estados Unidos e
graduou-se em Artes Liberais, com especialização em Ciências Políticas,
Jurídicas e Sociais, e cursou o mestrado em Artes (Universidade de Columbia) –
a tese, “Vida social no Brasil em meados do século XIX”, teve a orientação do
antropólogo Franz Boas (1858-1942), considerado o “pai da antropologia
americana”, com quem aprendeu a distinguir raça e cultura.
Depois da primeira passagem pelos Estados
Unidos, viajou pela Europa e, ao retornar ao Brasil, em 1923, deu início aos
estudos antropológicos, lecionou sociologia na
Faculdade de Direito de Recife em 1935 e inaugurou as cátedras de sociologia,
antropologia social e cultural e pesquisa social na Universidade do Distrito
Federal (pela primeira vez a disciplina era ministrada regularmente no
país) e atuou na política.
Em 1933 publicou Casa Grande & Senzala, que, sob a ótica do relativismo, oferece
elementos para a compreensão da formação social brasileira a partir da
miscigenação e da hierarquização dos cômodos das residências, entre outras
particularidades – contrariando a ideia de superioridade racial do branco, o
livro foi inicialmente hostilizado e rejeitado, mas ganhou edições em
diferentes países, como Argentina, França, Venezuela, Polônia e Estados Unidos;
Sobrados e Mocambos (1936) e Nordeste: aspectos da influência da cana
(1937) fecham a trilogia “Introdução à Sociedade Patriarcal no Brasil” – num
Brasil que, para ele, é o Brasil do parentesco, escravocrata e patrimonialista,
procura mostrá-lo sob outro ângulo: não apenas da luta de classes, mas sob o
aspecto da hibridização cultural, inclusive gastronômica e musical: para ele,
as melhores coisas do Brasil estavam misturadas.
Entre as distinções recebidas, estão 11
títulos de doutor honoris causa, o Prêmio Machado de Assis (1962), da Academia
Brasileira de Letras (ABL), o Prêmio Internacional La Madonnina (Itália, 1969),
Sir – Cavaleiro Comandante do Império Britânico (Inglaterra, 1971) e a Grã-Cruz
de D. Alfonso, El Sábio (Espanha, 1983).
Gilberto Freyre morreu no Recife, no dia 18
de julho de 1987, sendo sepultado no Cemitério de Santo Amaro.
* * * * *
BAHIA DE TODOS OS SANTOS
E DE QUASE TODOS OS PECADOS
Bahia
de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)
casas
trepadas umas por cima das outras
casas,
sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num
retrato
de revista ou jornal
(vaidade
das vaidades! diz o Eclesiastes)
igrejas
gordas (as de Pernambuco são mais magras
toda
a Bahia é uma maternal cidade gorda
como
se dos ventres empinados dos seus montes
dos
quais saíram tantas cidades do Brasil
inda
outras estivessem para sair
ar
mole oleoso
cheiro
de comida
cheiro
de incenso
cheiro
de mulata
bafos
quentes de sacristias e cozinhas
panelas
fervendo
temperos
ardendo
o
Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres
parindo
cheiro
de alfazema
remédios
contra sífilis
letreiros
como este:
Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para
sempre! Amém!)
automóveis
a 30$ a hora
e um
ford todo osso sobe qualquer ladeira
saltando
pulando tilintando
para
depois escorrer sobre o asfalto novo
que
branqueja como dentadura postiça em terra encarnada
(a
terra encarnada de 1500)
gente
da Bahia! preta, parda, roxa, morena
cor
dos bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira
que cupim não rói)
sem
rostos cor de fiambre
nem
corpos cor de peru frio
Bahia
de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes
eu
detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras
mas
gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros,
flor de papel, candeeirinhos,
tudo
à sombra das tuas igrejas
todas
cheias de anjinhos bochechudos
sãojoões
sãojosés meninozinhosdeus
e
com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que
eu
O
padre reprimido que há em mim
se
exalta diante de ti Bahia
e
perdoa tuas superstições
teu
comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do
Bonfim
e vê
no ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadoras
da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores
de cidades cristãs e de criaturas de Deus
Bahia
de Todos os Santos
Salvador
São
Salvador
Bahia
Negras
velhas da Bahia
vendendo
mingau angu acarajé
Negras
velhas de xale encarnado
peitos
caídos
mães
de mulatas mais belas dos Brasis
mulatas
de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os
meninos
do Brasil.
Mulatas
de mãos quase de anjos
mãos
agradando ioiôs
criando
grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando
iaiás
dando
cafuné nas sinhás
enfeitando
tabuleiros cabelos santos anjos
lavando
o chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés
dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções
enfeitados de rendas
estrelas
marinhas de prata
tetéias
de ouro
balangandãs
presentes
de português
óleo
de coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São
Salvador
Todos
os Santos
Tomé
de Sousa
Tomés
de Sousa
padres,
negros, caboclos
Mulatas
quadrarunas octorunas
a
Primeira Missa
os
malês
índias
nuas
vergonhas
raspadas
candomblés
santidades heresias sodomias
quase
todos os pecados
ranger
de camas-de-vento
corpos
ardendo suando de gozo
Todos
os Santos
missa
das seis
comunhão
gênios
de Sergipe
bacharéis
de pince-nez
literatos
que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa
mulatos
de fala fina
muleques
capoeiras
feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua
Chile
viva
J. J. Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São
Salvador
Todos
os Santos
um
dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro
às
tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades
ruivos
e bons
aos
teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)
a
tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema
cacau.
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