Foto: Mario André Coelho
Do
caminhar
Enquanto sinto saudades da cidade
Do
flanar 1
Eram noites quando eu caminhava pela cidade e as grades
de ferro estavam baixadas.
Eram noites em que o murmúrio das fábricas podia ser
ouvido, mimetizado com os motores dos carros e as vozes festivas que se
esparramavam pelas calçadas enquanto eu caminhava pelas transversais, traçando
zigue-zagues para desviar das pedras falsas e chegar aos lugares combinados.
Eram noites em que eu me aventurava na cidade falsamente vazia,
com a luz amarelada dos postes iluminando minha liberdade de sonhar e de fazer
poesia.
Eram noites que pouco perigo ameaçava, em que a
melancolia era só um componente; eram noites em que as estrelas eram contempladas
nas esquinas e o breu era metafórico.
Do
flanar 2
Mesmo quando caminho com destino previamente combinado
comigo mesmo antes de sair do apartamento, cada passo que dou, cada olhar que
toca, é motivo inconsciente para desviar-me no percurso.
Sempre que possível deixo que o vento me conduza, o vento
que encontro na esquina ou nas entradas das galerias; mas nem sempre o vento
reinventa, ainda que jogue meus pensamentos para outros cantos da cidade, outros
quadrantes.
Quando cruzava a cidade, daqueles lados do Cruzeiro até
os fundos do Clube Reno, sem que viva alma cruzasse meu caminho;
quando descia a Visconde, sob a neblina de madrugadas
embriagantes, de volta à casa de esquina que tinha a porta sempre aberta para
os amigos, que tinha churrascada no fim de semana e a noite nunca chegava ao
fim;
quando subia a BR, em noites quentes, desembarcando do
ônibus estudantil na praça Dante, reorientado pelos ponteiros do cartão-postal...
pouco importavam as distâncias.
Era só um ponto de vista, sempre foi...
Flanar
3
Caminhar pela cidade é reconstituir o passado em imóveis
que conseguem escapar da sanha imobiliária ou das ruínas daqueles que foram
abandonados pelos herdeiros de suas próprias histórias.
Caminhar pela cidade é encontrar novas histórias em cada
curva arquitetônica moderna, no discutível estilo dos vidros fumês, nas cercas transparentes
e nos muros altos; em cada cheiro, vitrine, nos cachorros que zanzam e nos
bebês que choram, nos namorados que sonham e naqueles que não sabem se terão
outro dia pela frente – e muito mais!
Caminhar pela cidade é desviar dos carros para não
aumentar as estatísticas, é entender as desconexões entre a preguiça e a pressa
no congestionamento, é encontrar-se com a poluição humana e a área verde restrita
aos canteiros centrais.
Caminhar é pensar num ikebana, bem bacana, para te
entregar.
Flanar
4
Uma cidade como tantas outras cidades, que não concede
tempo-espaço para o caminhar.
Uma cidade barulhenta até na madrugada, sobressaltada
pelos escapamentos e pelos aceleradores, uma cidade que dorme tensa e acorda
irritada.
Uma cidade de calçadas e ruas pensadas para os
automóveis.
Uma cidade como tantas outras cidades, em que as pessoas
e os prédios mudam em ritmo diferentes, às vezes em descompasso com a realidade
do mundo em que orbita e que está ao alcance dos dedos, mas anos-luz do
cotidiano comandado por ações materialistas das pessoas que decidem as ações
individualistas das pessoas que não decidem.
Esta não é uma cidade para pedestres.
Este é uma cidade como outra qualquer.
E não é.
Flanar
5
A cidade é auto-referenciada.
A cidade é hiperbólica.
A cidade é vertigem, é fuligem, é nuvem, é caos.
A cidade é uma indústria social com fileiras de
desempregados à sua porta.
A cidade presentificada é paradoxal: reinveste sua
riqueza banhada no lodo do cinismo e estende as mãos para quem já não tem onde
firmar os pés.
A cidade é um amor.
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