Ilustração a partir
de descrição oral de um rinoceronte, em 1515
No
processo do viver
Lembranças e sonhos confluem e fortalecem possíveis relações
entre as coisas sensíveis e as ideias
Fragmento
1
Leio que a relação de forças depende da conscientização; que
as ideias mudam o mundo e o mundo muda as ideias, o que só não acontece de
forma mais efetiva ou rápida porque subutilizamos ou, em grande escala, porque
subestimamos os sonhos.
Releio o parágrafo e enquanto isso me dou conta dos
ruídos da rua e de que “mundo” é um conceito tão amplo e serve para definir
tantas coisas; uma certa perturbação me atinge, ainda que por instantes.
E já não lembro o que sonhei.
Estes sonhos que temos à noite, que recorrentemente queremos
lembrar e não conseguimos, podem ajudar a mudar nossas vidas, desafogar nossas
raivas e frustrações, ou, ainda, podem facilitar o acesso para que nos
conheçamos melhor.
Dizem.
De toda forma e em algum grau, eles compensam e
complementam nossa visão sobre a realidade.
É o que leio.
Fragmento
2
Agora, mudar o mundo a partir de ideias “e” de sonhos
parece cada vez mais interessante e desafiador, inclusive para ter a dimensão
dessa consciência em relação às “forças”.
Quando Lennon gravou “God” deu a ideia de que o sonho
havia acabado, mas que deveríamos continuar, apesar da dor; dez anos depois, uma
dor.
Mas o mundo continuou, mesmo depois que ele viu as balas
disparadas por Mark Chapman irem ao seu encontro – o tempo, congelado em páginas
de jornais e revistas em dezembro de 1980, patina rumo a dezembro de 2020, angustiado
em meio à perplexidade e à pandemia, física e mental.
Muitas ideias de Lennon e de outros compositores daquela
geração contagiam novos ouvintes, novos compositores, outros poetas, que
renovam, com maior ou menor condição de apropriar-se do sentido, a esperança de
que a paz tenha uma chance, por exemplo.
Vivemos numa dúvida teórica permanente, mas nem por isso
deixamos de viver, e esquecer faz parte do processo.
Assim como sonhar.
Fragmento
3
Então, continuamos a sonhar – e a esquecer –, ainda que o
cotidiano imprima uma realidade devastadora, bem perto ou um pouco mais longe,
já que a noção de proximidade se tornou relativizada quando tudo se tornou
globalizado e agora muda de novo o sentido, quando as pessoas desrespeitam as
orientações de segurança da saúde.
Tudo muda, veja só; só o que não muda é a precariedade do
humano!
Diante do momento em que, tendo vários horizontes para o
qual se dirigir, parece optar pelo aniquilamento.
Muitas ideias que tinha na adolescência já foram
transformadas; os sonhos, daqueles que me aguardavam na cabeceira da cama, às
vezes, surgem na forma de pesadelos, individuais ou coletivos, quase
materializados em seres malignos, que ameaçam o cotidiano das coisas simples.
Ou tudo ao mesmo tempo, a melancolia compartilhando o
espaço-tempo com um certo meliorismo.
O sonho não acabou, os sonhos não acabarão, mas é
necessário que eles sejam mais do que uma ação na imaginação, muito mais.
É o que me digo.
Fragmento
4
Muitas lembranças vêm até mim em suaves solavancos, talvez
por isso a escrita em tópicos, por isso o tropeço nas palavras, até encontrar a
que parece mais adequada; o poema curto, na crônica e matemática busca da ideia
exata; não como quando ainda “catava milho” no curso de datilografia do Senac,
mas como um apaixonado na delirante entrega do sentimento.
Assim na poesia, assim na prosa, ao pé do ouvido ou num
palanque-palafita.
Resgato lembranças de uma memória pra lá de retentiva;
tento atualizar o presente, enquanto lido precariamente com as memórias de
coisas recentes, que se ocultam atrás de palavras que insistem em se
materializar.
No meio disso tudo, lembranças e sonhos confluem para
fortalecer as relações possíveis entre as coisas sensíveis e as ideias.
Fragmento
5
Ainda ontem – no tempo relativizado – sonhava com uma
vida bastante diferente, com diploma de arquiteto e outros quetais sociais;
hoje, castelos concretos desmoronam como edifícios de areia na beira da praia –
lembranças são o que restam nos próximos quartos de meias horas...
Mas que geografia é essa em que me encontro?
Que história é essa que vivo?
Que fissura?
Em cidades polifônicas, de narrativas oficiais, de narrativas
marginais, busco respirar entre os prédios e já penso em novos espaços nos
centros urbanos, já caminho de modo diferente pelas ruas; os encontros nunca mais
serão os mesmos – em perspectiva, nunca foram.
No cérebro, me aguardam memórias verdadeiras, embora elas
não durem para sempre, nem sempre estejam disponíveis quando a gente quer ou
precisa; e elas convivem com falsas memórias, dizem, sujeitas ao mesmo cérebro-sujeito
– ao que ele quer lembrar, inventar e/ou esquecer.
Assim, o que chegar à superfície de minha consciência, quase
certo terá um novo colorido ou um formato diferente da realidade da qual foi
apropriada.
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