Poema de Um olhar sobre a cidade
e outros olhares (1995)


Não são apenas as horas que passam!

De repente, já é outro dia, já é outro milênio

Hora 1
Nessas horas em que o tempo não passa, me sinto impaciente na sala de espera, folheando revistas velhas, com notícias velhas, olhando fotografias de gente velha que pensa ser jovem.
Ultimamente, os dias têm sido de contagens: da escolha do feijão ao número de peças de roupas que podem ser lavadas, antes das chuvas e do frio, para depois serem guardadas no armário à espera da próxima estação – “lá fora”, outras pessoas fazem outras contas, sinistras: na economia, na educação, no acesso aos bens primários, na cultura; no aumento exponencial do número de covas.
Conto nos dedos os dias que passam, enquanto tenho dedos; enquanto tenho saúde mental reviso as horas descartadas; já quase adaptado ao “futuro das maravilhas” do século XXI, dia desses acordei ouvido dizer que é preciso despedir-me dele e voltar, pelo menos, para o século XX.
Seria a solução?
Há questões não resolvidas, e eu concordo; dá para listar algumas: saneamento básico, distribuição de riquezas (subentendendo a erradicação da fome e da miséria), equilíbrio entre desenvolvimento econômico e meio ambiente, reconhecimento das diferenças, a acomodação da belicosidade cotidiana, o acesso à tecnologia digital e aos recursos básicos...
É muita coisa a ser resolvida, tantas perguntas sem respostas, que sessões semanais de terapia por vezes não comportam – já não bastassem os fantasmas do passado que me assombram e perturbam minha noção de futuro!

Hora 2
Admito que os dias estão confusos – têm manhãs em que eu penso estar em sessões da tarde e, quando chega a noite, fico vagando pelo apartamento como se o microcosmo ali contido fosse a cidade que eu conheço.
Nas paredes de azulejos e pelas janelas já vejo as marcas da estação; a música que ouço tem o ritmo e o tom de um passado que evoca presenças, enquanto eu procuro me organizar entre arquitexturas, projeções e memórias diante do computador.
Incorporo no dedilhar do teclado novas reflexões e somo vocabulário a partir das leituras e das releituras que as horas me permitem, que a divagação não interrompe, que os sonhos expressam e a mente custa a acomodar.
Convivem a sensação de urgência e a contemplação, física, pictórica, poética, filosófica, criadora – e não é pouca coisa para lidar, são muitas fissuras para preencher, para remendar, para compartilhar e curar.

Hora 3
Voltar a um passado, tendo consciência que o presente não existe e o futuro é a soma de possibilidades que hoje parecem valer tanto quanto nada: metafísica do não-poder.
Desde há muito se sabe que não é possível um mundo estático, que a irreversibilidade, a probabilidade e a coerência são condições para a existência; os continentes estão em constante mudança, imperceptíveis, mas constantes, os organismos se deterioram, aleatoriamente ou impulsionados por forças internas e externas, a mente se incapacita após se expandir, coerentemente ou não; o processo de entropia é irreversível.
Sair às ruas obedecendo as distâncias, sem apertar mãos, sem abraçar e beijar as pessoas são práticas incorporadas ao cotidiano de flexibilizações que performarão, quem sabe, a coreografia de uma outra geração – até chegar ao elevador, até precisar do transporte urbano, até entrar num supermercado; aí, a sinfonia da cidade adquire outro tom, nesses lugares não tem espaço para o regramento, às vezes, são não lugares.
Internamente, a divisão cruel entre o saber agir racionalmente e o instinto, a necessidade do carinho, daquilo que nos afeta, do toque; em desdobramentos contínuos, o universo deixa de ser visto apenas como uma coisa só e ganha possibilidades com a aceitação do multiverso.
Sob os sinais redentores da pós-modernidade, que insiste nas “novidades” e na “superação”, com led digital em esteira ergonométricas e holografias de Elvis Presley, alcançamos outras dimensões, e, ao mesmo tempo, nos vemos refreados em impulsos mais primitivos e precisamos prestar atenção às necessidades e hábitos básicos, inclusive o de lavar as mãos e higienizar as roupas e os pacotes do supermercado.
Em um momento distraído, posso me permitir o estranhamento ao observar os microfósseis da Hallucigenia sparsa, de “longos” e moles três centímetros; ou posso ficar feliz em saber dos avanços da microeletrônica e da nanotecnologia, inclusive a serviço das necessidades hospitalares.
Mas, e onde ficam as coisas grandiosas do Universo?
Os gestos magnânimos?
As delicadezas do cotidiano?
Qual o lugar, agora, para a poesia dos encontros?
Quantas horas, ainda, para reencontrar-me com a pureza do jasmim que perfuma minhas lembranças?

Hora 4
Horas lentas, de recolhimento, de ensimesmamento.
Entre alegorias e simbolismos, o poeta exprime-se sem pensar no universal, em aparente egoísmo; pelo menos tenta, sem tomar consciência que, ao fazer isso, também fala por todos ou, na pior das hipóteses, fala por um.
Os conhecimentos ancestrais são extintos pela superficialidade dos ensinamentos e, continuamente, reafirma-se a necessidade de “objetos naturais” embora estes sejam confundidos com o “objeto real ou irreal, mental ou físico”.
Horas tristes, de verdades revistas e mentiras repetidas.
O tempo do não-necessário, mas também possível, do que pode ser ou não-ser.
O tempo da náusea.
Horas e horas em permanente negação da linearidade sem que se consiga deixar de prestar atenção ao percurso progressivo e à afirmação dos fins – liberdade, bem-estar etc.
Tempo de mudanças e de permanência kantiana.
Dá-se ao tempo a nossa medida de tolerância e expectativa.

Hora 5
Nessas horas, todos sentem saudades; todos manifestam suas saudades, inclusive das certezas que o conhecimento dos processos naturais e artificiais oferecia.
E como não sentir saudades se até mesmo a certeza subjetiva está sobre palafitas morais e os templos se transformaram em cornucópias de falso dinheiro e esperanças milagreiras?
Relembro, agora, quando mudou o milênio: foram feitos muitos planos, anunciadas redenções, as pessoas se prepararam para um mundo melhor, o mercado acenou com a prosperidade; hoje, é possível se dar conta de que nada ocorreu de muito diferente – a insistência de que a passagem de tempo no calendário significa algo mais do que a proximidade do apocalipse sustenta a preservação da espécie, ainda que de forma tosca e sem muita compaixão; de engano em engano, as horas que contamos põem à prova o amor à vida, mesmo e sobretudo quando ela se aproxima do fim, mesmo quando observamos a falsa paralisação gerada pela pandemia.
O que temos, para hoje, nessas horas em que a noção do tempo é outra, é um mundo que continua a se revelar a partir do princípio da crueldade.

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