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Poeta, ensaísta e tradutora, a carioca ANA CRISTINA CÉSAR nasceu em 2 de junho de 1958. “Musa da geração mimeógrafo”, fez parte da “geração rock’n’roll”, ao lado de Waly Salomão (1943-2003) e Paulo Leminski (1944-1989), entre outros, segundo apontam alguns estudos, ou “parte de toda uma progênie marginalizada”, conforme outros olhares. Inclassificável, a poesia de Ana C. permanece clara e cristalina. “Seu legado”, afirma Paulo Ricardo Alves, “é uma escrita nova e insurgente, escrita de rupturas e transformações, transmutações até. A subjetividade, o individual e a libido como cosmos, de modo a cruzar o outro, efêmero e passional, em abraços de fato, com direção infinita”.
A teus pés (1982, reeditado em 2016) reúne três livros independentes publicados anteriormente (Cenas de Abril, 1979; Correspondência Completa, 1979; e Luvas de Pelica, 1980) – ao “apresentar” o livro, o escritor Caio Fernando Abreu afirma que o livro “revela [...] um dos escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira” (Brasiliense, Coleção Cantadas Literárias, nº 8); outra reunião de seus poemas foi feita em 1985, Inéditos e Dispersos, ambos reeditados no final da década. Vieram, ainda, Novas Seletas, organizada por Armando Freitas Filho, e Poética (2015).
O acervo literário da poeta encontra-se no Instituto Moreira Salles (IMS). Lá, encontram-se livros, periódicos, revistas de arte e teses de doutorado, além de documentos que incluem anotações de leitura, crítica literária, poemas e cadernos de notas, correspondências, recortes de jornais e revistas, desenhos, audiovisuais e provas de impressão de livros.
Quando o acervo foi reunido, a professora Viviana Bosi, da Universidade de São Paulo (USP), encontrou conjuntos organizados pela poeta, com título e tudo: “Prontos, mas rejeitados”, “Inacabado”, “Rascunhos/primeiras versões”, “Cópias”, “O livro” e “Antigos & soltos”; dessa pesquisa resultou o livro fac-similar Antigos e soltos (2008), publicado pelo IMS, com organização e estudo introdutório da professora.
A poeta formou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 1975; no ano seguinte, foi incluída na antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda; estudou na Universidade de Essex, na Inglaterra, onde morou entre 1979 e 1981, e recebeu o título de Master of Arts (M.A.) em Theory and Practice of Literary Translation – que resultou no livro Escritos na Inglaterra (póstumo, de 1988); sua dissertação de mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ resultou na publicação de Literatura não é documento (1980), levantamento de documentários sobre escritores e movimentos literários do Brasil.
Ela mesmo foi “documentada”: sua curta trajetória já foi contada em vídeos: o cineasta João Moreira Salles produziu 10 minutos de imagens fragmentadas, “algo que sempre cerca o real, mas jamais consegue capturá-lo”, como diz Elisabeth Orsini (1990), quando o compara ao videodocumentário produzido por Cláudia Maradei, Ana C., com depoimentos de Cláudio Willer, Reinaldo Moraes, Silviano Santiago e Armando Freitas Filho, curador da obra da poeta.
Com 31 anos, no dia 29 de outubro de 1983, a poeta se suicidou, atirando-se da janela do apartamento de seus pais, em Copacabana (RJ).

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CARTILHA DA CURA

As mulheres e as crianças são as primeiras que
desistem de afundar navios.

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SONETO

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno maior
Ou é um lapso sutil?

* * * * *

FISIONOMIA

Não é mentira
É outra
A dor que dói
Em mim
É um projeto
De passeio
Em círculo
Um malogro
Do objeto
Em foco
A intensidade
De luz
De tarde
No jardim
É outra
Outra a dor que dói

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Dia 16 de outubro de 1983

Primeira noite decente. Sonhei com o consultório da Mary atravessado de papel higiênico, grande confusão: seria quem? Analista, amiga ou namorada? Nenhuma das três?
Não quero agora computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu poderia deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder. Rejane por perto, acompanhando meus progressos. Peço a ela encarecidamente que me faça o favor de lembrá-los. Eu mesma me exercito, mas que péssima memória! Notas, Armando. A memória Fraca para os progressos! Chega desse lero. Poesia virá quando puder. Por enquanto, Filho, é isso aí apenas. Saí ao sol onde tentei um do-in, me sinto exaurida. Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a má fama depois que estamos mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho. Diário não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem capazes.


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