Foto: Mario André Coelho

Da janela do meu apartamento

Com alguns confortos, penso num horizonte ilimitado

Da caverna 1
Enquanto a noite avança e as folhas dançam com o vento do outono, meu olhar segue até o horizonte imaginado além dos prédios que o bloqueiam, circunscrito e circunspecto.
Mesmo sem compreender muito bem, ao seguir este caminho vou ao encontro de um outro horizonte, um horizonte pressentido e vasto, que, por um momento, é aquele horizonte para o qual eu me dirigia antes de dar-me conta de ter chegado – ainda que não pareça.
Há anos sigo caminhando pelas ruas da cidade, em linhas retas, em ziguezagues, nas paralelas e nas transversais; subo e desço morros, de Lourdes a São Pelegrino ou um destino qualquer.
E há sempre mais ruas e mais esquinas e isso também angustia.
Em alguma noite dessas devo ter parado numa esquina e me deparado com a possibilidade de um horizonte ilimitado – vários horizontes possíveis, todas as realidades, todas as verdades.
Tantas utopias sob a luz das ruas amareladas que as horas não acalmam.

Da caverna 2
Daí, de tanto ouvir e ler, lembro que tudo tem limite.
Porém, concordar cegamente com a afirmação me manteria numa série de conflitos internos.
Teria que duvidar, por exemplo, da circunferência do globo – logo, o horizonte seria finito, haveria uma só verdade, uma única realidade.
Por isso não posso aceitar o que vejo, o que sinto, o que toco, o que sei, como imutável.
Tomar decisões, ainda que relativamente mínimas, implica um processamento dos conflitos internos que passam despercebidos nas ações cotidianas.
Desencadeia uma miríade de reações.
Omitir-se é também tomar uma decisão.
Qualquer posicionamento alteraria, por certo, um dos horizontes.
E, se a razão foi “criada” no mundo moderno, foi também nele que ela se tornou desracionalizável.

Da caverna 3
As fantasias narcisistas não cessaram com os indicativos para a reclusão.
Os meios digitais, enfim, têm a prevalência nas relações, quer se queira, quer não.
O sociólogo Umberto Eco havia alertado para a “invasão dos imbecis”, mas, como em muitas outras situações, a realidade das coisas foi relativizada.
O mundo global viveu décadas de industrialização, de elevação de nível social e intelectual; ao mesmo tempo, fomos testemunhas da corrosão das formas político-jurídicas e ideológicas.
Havia uma perspectiva, num dos horizontes possíveis, de que a humanidade saberia viver, ser, trabalhar, sentir, agir e pensar; sonhar e imaginar.
Os novos significados que essa possibilidade representou trouxe à tona também o medo, o preconceito, o ódio, o revanchismo e outros tantos maus sentimentos – o horizonte teórico e utópico de confraternização e camaradagem, com fraterna cumplicidade da opinião pública, foi moldado às avessas pelo autoritarismo e pela falta de democracia, e parece querer devolver ao discurso das lideranças a premissa do “cada um por si”.
Sou induzido a acreditar, então, que o “maravilhoso” só irei encontrar na natureza, à distância, e na poesia, na teoria e na prática, já que o mundo atendido pelas redes de comunicação claudica quando se trata da sociabilidade humana e urbana; num tempo em que os encontros diretos e as aproximações físicas se tornaram perigosos, este novo mundo “substitui” as principais atrações das cidades – as ruas e as esquinas, os parques e as praças.
Por falar, nisso, as máscaras que usamos para nos proteger também servem para nos esconder?

Da caverna 4
Os cientistas sociais, que poderiam pensar novos conceitos e propor novas interpretações, que teriam condições de repensar os conceitos e as interpretações, estão amordaçados.
Não houve tempo nem argumentos, como chegou a se pensar no começo do século, para pôr fim às radicalizações intelectuais, sociais e políticas; o que presenciamos na última década, com intensidade absurda nos últimos anos, foi exatamente o contrário: muitos continuam a se alimentar da discriminação e da marginalização, o que nos trouxe, como lembrava Octavio Ianni, aos “fundamentalismos religiosos”, o que só parece facilitar o aumento da crueldade social.
Há quem afirme que o objetivo de pôr fim à pobreza global até 2030 já era – e, enquanto o tempo passa, não sabemos como lidar com a baixeza, tendemos a ceder às pulsões maldosas e vingativas.

Da caverna 5
É sabido que está difícil respirar, que as necessidades individuais, efetivamente, não deram lugar ao coletivo.
É triste.
E, talvez do nada, me ocorre uma história, simplíssima, que me contaram lá nos anos 80, e que eu nunca esqueci, mas também não recordo de haver contado.
Certa tarde, um soldado raso, nos minutos que antecediam a hora da educação física, fez uma pergunta ao capitão:
– Porque não vamos aos bairros ajudar as pessoas que não têm condições de uma vida melhor, já que pouco fazemos enquanto estamos no quartel?
O capitão da bateria, do alto de sua superioridade, respondeu com um deboche nos lábios:
– Escuta, aqui, ô, soldado. Se tu me fizer outra pergunta desse tipo, tu vai passar uns dias na cadeia para pensar direito!
Quase síncrono, soou o apito para a ordem unida e as flexões, enquanto o horizonte se turvava com a nuvem de ignorância que cobria o campo de futebol.
E a vida seguiu, em contínuas reflexões.

Et reliqua
Se tudo está vivo, inclusive os prédios e as montanhas, quero crer que ainda há, em algum horizonte, uma nova forma de vida para o ser humano, em que a face sombria do individualismo não ofusque as liberdades, a autonomia e as responsabilidades que a sua face iluminada permite.
Existem outros mundos, diferentes deste em que estou inscrito e em que escrevo, dos quais eu não faço ideia – para o melhor ou para o pior – ou tenha apenas uma vaga noção.
Uma vaga noção de um horizonte possível, já que o mundo em que nasci e vivo parece estar chegando ao fim, o calendário, descartável – e será preciso, neste novo caminho, redescobrir outras sensibilidades e outras possibilidades de continuarmos humanos.

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