Da
janela do meu apartamento
Com alguns confortos, penso num horizonte ilimitado
Da
caverna 1
Enquanto a noite avança e as folhas dançam com o vento do
outono, meu olhar segue até o horizonte imaginado além dos prédios que o bloqueiam,
circunscrito e circunspecto.
Mesmo sem compreender muito bem, ao seguir este caminho
vou ao encontro de um outro horizonte, um horizonte pressentido e vasto, que,
por um momento, é aquele horizonte para o qual eu me dirigia antes de dar-me
conta de ter chegado – ainda que não pareça.
Há anos sigo caminhando pelas ruas da cidade, em linhas
retas, em ziguezagues, nas paralelas e nas transversais; subo e desço morros,
de Lourdes a São Pelegrino ou um destino qualquer.
E há sempre mais ruas e mais esquinas e isso também
angustia.
Em alguma noite dessas devo ter parado numa esquina e me
deparado com a possibilidade de um horizonte ilimitado – vários horizontes
possíveis, todas as realidades, todas as verdades.
Tantas utopias sob a luz das ruas amareladas que as horas
não acalmam.
Da
caverna 2
Daí, de tanto ouvir e ler, lembro que tudo tem limite.
Porém, concordar cegamente com a afirmação me manteria numa
série de conflitos internos.
Teria que duvidar, por exemplo, da circunferência do
globo – logo, o horizonte seria finito, haveria uma só verdade, uma única
realidade.
Por isso não posso aceitar o que vejo, o que sinto, o que
toco, o que sei, como imutável.
Tomar decisões, ainda que relativamente mínimas, implica
um processamento dos conflitos internos que passam despercebidos nas ações
cotidianas.
Desencadeia uma miríade de reações.
Omitir-se é também tomar uma decisão.
Qualquer posicionamento alteraria, por certo, um dos
horizontes.
E, se a razão foi “criada” no mundo moderno, foi também nele
que ela se tornou desracionalizável.
Da
caverna 3
As fantasias narcisistas não cessaram com os indicativos
para a reclusão.
Os meios digitais, enfim, têm a prevalência nas relações,
quer se queira, quer não.
O sociólogo Umberto Eco havia alertado para a “invasão
dos imbecis”, mas, como em muitas outras situações, a realidade das coisas foi
relativizada.
O mundo global viveu décadas de industrialização, de
elevação de nível social e intelectual; ao mesmo tempo, fomos testemunhas da
corrosão das formas político-jurídicas e ideológicas.
Havia uma perspectiva, num dos horizontes possíveis, de
que a humanidade saberia viver, ser, trabalhar, sentir, agir e pensar; sonhar e
imaginar.
Os novos significados que essa possibilidade representou
trouxe à tona também o medo, o preconceito, o ódio, o revanchismo e outros
tantos maus sentimentos – o horizonte teórico e utópico de confraternização e
camaradagem, com fraterna cumplicidade da opinião pública, foi moldado às
avessas pelo autoritarismo e pela falta de democracia, e parece querer devolver
ao discurso das lideranças a premissa do “cada um por si”.
Sou induzido a acreditar, então, que o “maravilhoso” só
irei encontrar na natureza, à distância, e na poesia, na teoria e na prática,
já que o mundo atendido pelas redes de comunicação claudica quando se trata da
sociabilidade humana e urbana; num tempo em que os encontros diretos e as
aproximações físicas se tornaram perigosos, este novo mundo “substitui” as
principais atrações das cidades – as ruas e as esquinas, os parques e as
praças.
Por falar, nisso, as máscaras que usamos para nos
proteger também servem para nos esconder?
Da
caverna 4
Os cientistas sociais, que poderiam pensar novos
conceitos e propor novas interpretações, que teriam condições de repensar os
conceitos e as interpretações, estão amordaçados.
Não houve tempo nem argumentos, como chegou a se pensar
no começo do século, para pôr fim às radicalizações intelectuais, sociais e
políticas; o que presenciamos na última década, com intensidade absurda nos
últimos anos, foi exatamente o contrário: muitos continuam a se alimentar da
discriminação e da marginalização, o que nos trouxe, como lembrava Octavio
Ianni, aos “fundamentalismos religiosos”, o que só parece facilitar o aumento
da crueldade social.
Há quem afirme que o objetivo de pôr fim à pobreza global
até 2030 já era – e, enquanto o tempo passa, não sabemos como lidar com a
baixeza, tendemos a ceder às pulsões maldosas e vingativas.
Da
caverna 5
É sabido que está difícil respirar, que as necessidades
individuais, efetivamente, não deram lugar ao coletivo.
É triste.
E, talvez do nada, me ocorre uma história, simplíssima,
que me contaram lá nos anos 80, e que eu nunca esqueci, mas também não recordo
de haver contado.
Certa tarde, um soldado raso, nos minutos que antecediam
a hora da educação física, fez uma pergunta ao capitão:
– Porque não vamos aos bairros ajudar as pessoas que não
têm condições de uma vida melhor, já que pouco fazemos enquanto estamos no
quartel?
O capitão da bateria, do alto de sua superioridade,
respondeu com um deboche nos lábios:
– Escuta, aqui, ô, soldado. Se tu me fizer outra pergunta
desse tipo, tu vai passar uns dias na cadeia para pensar direito!
Quase síncrono, soou o apito para a ordem unida e as
flexões, enquanto o horizonte se turvava com a nuvem de ignorância que cobria o
campo de futebol.
E a vida seguiu, em contínuas reflexões.
Et
reliqua
Se tudo está vivo, inclusive os prédios e as montanhas,
quero crer que ainda há, em algum horizonte, uma nova forma de vida para o ser
humano, em que a face sombria do individualismo não ofusque as liberdades, a
autonomia e as responsabilidades que a sua face iluminada permite.
Existem outros mundos, diferentes deste em que estou
inscrito e em que escrevo, dos quais eu não faço ideia – para o melhor ou para
o pior – ou tenha apenas uma vaga noção.
Uma vaga noção de um horizonte possível, já que o mundo
em que nasci e vivo parece estar chegando ao fim, o calendário, descartável – e
será preciso, neste novo caminho, redescobrir outras sensibilidades e outras
possibilidades de continuarmos humanos.
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