A poeta ASTRID CABRAL nasceu em 25 de setembro de 1936, em Manaus (AM), onde, mais tarde, foi uma das fundadoras do movimento Clube da Madrugada. Seu primeiro livro e de contos, Alameda, de 1963 (com reedição em 2014). Ponto de cruz, o segundo, seria publicado só em 1979. Em 2008 publicou Antologia Pessoal e 50 poemas escolhidos pelo autor, e, em 2014, Infância em franjas. Além de poesias e contos, também escreveu poemas voltados para o público infantojuvenil em Zé Pirulito (1982).

Com Lição de Alice, ganhou o Prêmio Olavo Bilac (Academia Brasileira de Letras, 1987), com Intramuros, o Prêmio Nacional de Poesia Helena Kolody (1998), com Rasos d’água, o Prêmio Nacional de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2004), e, foi reconhecida pela União Brasileira de Escritores com o prêmio Troféu Rio de Personalidade Cultural 2012. É membro do PEN Clube do Brasil.

Traduziu Walden, ou a vida nos bosques e A desobediência civil, de Henry David Thoreau, ambos em 1984, e teve os livros Les doigts dans l’eau e Cage traduzidos e publicados na França e nos Estados Unidos (respectivamente) em 2008.

Foi professora, formada em Letras Neolatinas (UFRJ). Lecionou na Universidade Nacional de Brasília (UnB), mas deixou de lecionar em 1965 devido ao golpe militar – três anos depois ingressou no Itamaraty e, concursada, tornou-se Oficial de Chancelaria, tendo prestado serviço em Brasília, no Rio de Janeiro, em Beirute e Chicago.

* * *


ÁUREOS TEMPOS


Áureos tempos aqueles

quando na manhãzinha goiaba

colhíamos no cerrado gabirobas

ainda vestidas de orvalho.

Pés e patas competiam no capim

pródigo de carrapichos.

Gestos elásticos ultra-rápidos

assustávamos insetos e aves.

Um séquito de suaves súditos

nos seguia em semi-adoração

nós, os príncipes daquele feudo.

Depois, o asfalto rasgou o campo.

Cogumelos de concreto brotaram.

Cresceram as crianças e a cidade.

Anãs ficaram as árvores aos pés

de edifícios colossais. Sumiram

pássaros gabirobas araçás.

Fim de passeios e piqueniques.

Só ficou a fome funda das frutas

no vão sem remissão das bocas .


* * *


SORVETERIA


Dia de verão qualquer

no labirinto dos shoppings

os homens tomam sorvete.

Alguns engolem vorazes

receosos de que o mormaço

lhes arrebate a porção.

Outros, lentos, não acertam

com o creme fugaz o ritmo

da fome. Morrem na fonte.

Poucos os que se deleitam

fruindo o açúcar e a neve

sem dúvidas sobre a dádiva.

Existe quem torça a cara

às iguarias servidas

imaginando outras raras.

E quem enfeite o bocado

de caldas extras, perfume

de licores, nozes finas.

Todos um dia qualquer

terão suas taças vazias

lábios imóveis, mãos frias.


* * *


DE MÃOS ATADAS


Enquanto com as mãos intatas

Garatujo este poema inútil

Assalta-me a cifra macabra:

Em mil novecentos e oitenta e seis

Oitocentos mil operários brasileiros

Tiveram as mãos mutiladas.

Escrever pra quê se a palavra

Não é espada que transpasse

O coração de pedra do poder

Há séculos de mãos cruzadas?

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