À procura do mito consolador

Parece que vivemos no pior déjà-vu

De través 1

A crise é contínua e deixou de ser retórica de economista ou conversa psicologizante.
Religiosa, política e econômica, sobretudo de identificação, diante das grandes transformações sociais, decisivas para a história da humanidade, a palavra e o sentido incorporaram-se ao vocabulário e à existência.
Como nenhum sistema político e nenhuma forma de misticismo conseguiram propor uma unidade definitiva, um princípio único para a vida em sociedade, e pelo fato de nos constituírmos seres orgânicos, é inevitável que o caminho seja pontuado por sobressaltos.
Existem na História momentos de calmaria, aquela que precede as tempestades; não há como evitar as incertezas e as lutas, a não ser em momentos ou em grupos isentos de conflitos, quando a noção de segurança coexiste – mas, ainda assim, a brevidade é um componente apreciável de ser observado.
Nos dicionários, “criação” vem logo depois do verbete crise; mesmo que a ordem fosse invertida, não mudaria as pontes que erguemos para não cair no abismo já que a circularidade pode ser entendida, compreendida e até aceita como uma forma de viver os desdobramentos da existência.
Só que às vezes parece que vivemos em déjà-vu, e a reprise não inclui só os melhores momentos.

De través 2

O que de vez em quando consola é que também somos feitos de ideias, mesmo que o mundo ao redor amanheça decadente, mesmo que o cotidiano seja pontuado por problemas – desde aqueles pelos quais podemos nos responsabilizar como por aqueles causados pelos outros.
Não se trata apenas de transferir responsabilidades; a autocrítica é mais um dos tantos demônios que repousam a cabeça comigo todas as noites, com neblina ou com estrelas.
E se a cabeça descansa sobre o travesseiro, há um tempo antes que o sono vença em que a mente vaga entre os anéis de Saturno, onisciente.
Há questões prementes, outras apenas atrapalham, mas, paralelo ao horizonte, o corpo aos poucos perde a identidade e, com isso, adquire condições de investigar aqueles segredos e desejos mais escondidos que nos mantêm vivos, embora por vezes desanimados e tristes feito um Baudelaire sem ópio a caminhar acometido pelo spleen pelas ruas da cidade.
Agimos sobre a imaginação e continuamos a folhear o livro de nossa existência, mesmo que a razão pareça adormecida, já que a criação parece estar além de nossa capacidade de entendimento.
Ou de racionalização.
Procuramos criar, em vigília ou em sonhos, um mundo melhor, onde não se viva mais sob a ameaça da escravidão da Colônia e do Império, em que o medo do apagamento não paire sobre nossos pensamentos e nossas falas; essencialmente, todas as formas de manifestação artística são mediadas pela técnica, por isso é preciso não só reproduzir o que já é vivido, mas o que ainda é possível viver, usufruindo de toda a tecnologia que está ao alcance.
Não o “novo normal”, não a apropriação da liberdade da fala e da escrita por quem tem o interesse de subordinar a fala e a escrita, e com elas, a liberdade de expressão, até porque há muito deixamos de ser meros consumidores de conteúdos – mas nunca é demais lembrar que a esperança deve ser construída.

De través 3

O dia mais curto do ano já ficou para trás – a tendência é que os dias se alonguem, como se o ano já não parecesse interminável.
É setembro, mês em que o vento é um dos mais agradáveis de sentir, já que se aproxima a primavera; é tempo de transformações e tempo de rever a relação com a natureza, não só com a Amazônia ou com os índices de poluição do planeta, que afeta a natalidade, causa doenças cardíacas e pulmonares, entre outros tantos danos.
Nossa noção de existência inclui a possibilidade, logo, transcendência; é difícil pensar nisso quando o número de mortos justamente pelas aproximações e pela despreocupação com o social aumenta exponencialmente, quando o risco de ficar desempregado representa um forte baque psicológico, quando a situação atual induz as pessoas ao suicídio – só em maio deste ano foram verificadas mais de 100 mil menções sobre o assunto nas redes sociais, motivadas pelo isolamento social, segundo pesquisa publicada em julho; os coordenadores avaliam que essa interação possa contribuir com a redução do número de pessoas que põem fim à vida; em 2019, os brasileiros haviam ultrapassado a média mundial, na proporção feita a cada mil habitantes.
Setembro também é o mês de pensar sobre o assunto.
Fora isso, canto baixinho e só as paredes me ouvem... “estou aqui de passagem”...

De través 4

Fora isso e outros quetais, volto a pensar que a cidade ainda não é feita para todos – a cidade é feita para quem pode pagar pelos privilégios urbanos e até agora nenhum plano diretor reduziu a desigualdade de uma forma ideal, da mesma forma que sonhar não altera a realidade quando despertamos nestas manhãs chuvosas de fim do inverno.
Ainda que trancados em nossas casas, não podemos esquecer que também estamos entrelaçados subjetiva ou objetivamente com todos os moradores da cidade, quer queiramos ou não, em relações de dependência estabelecidas por necessidade ou quereres – no supermercado ou na feitura de um poema para quem de repente despertou sensações há muito esquecidas.
Os espaços abertos e de convivência comum diminuem na mesma proporção da verticalização; o horizonte fica mais distante e nem o colorido das edificações acalma ou poetiza o olhar – a reprodução da pirâmide social também se dá pela altura dos prédios e da extensão dos muros de proteção, pelo distanciamento, pelo alargamento das periferias, pelo apagamento de vozes e expressões não supremacistas.
Da minha janela, penso: como serão as cidades pós-pandemia?
Seremos serenos?
Da minha janela, por trás da ramagem de algumas árvores que ocultam as paredes de concreto ali adiante, tento imaginar o mundo em um futuro próximo, este mesmo mundo que celebra o Dia da Amazônia e ao mesmo tempo assiste, impotente e impassível, a devastação oficial (e oficiosa, no pior sentido) que ocorre neste momento contra as estimadas 40 mil espécies de plantas, milhões de insetos e 400 tipos de mamíferos – não pense, “pacato cidadão da civilização”, que as árvores derrubadas por lá não provocarão prejuízos por acá!

De través 5

Dizem os livros que o racismo tornou-se um mito consolador para os alemães, que procuravam fugir da depressão da derrota depois da Primeira Guerra Mundial, embora a doutrina tenha nascido no século anterior, elaborada por um francês que defendia a aristocracia contra a democracia.
Sendo assim, é fácil dizer que o mundo continua em depressão, mas também é evidente que a briga contra a democracia (não apenas como forma de governo, mas como um modo de ser e pensar) continua.
Os contrários à existência de uma pessoa com direito a ter suas potencialidades positivas desenvolvidas, costumam se expressar pela violência, com a opressão, pela ignorância e com a destruição.
Os contrários à existência de uma pessoa com direitos desconhecem que a palavra “raça” é uma invenção e que as “teorias racistas” são falsas e servem apenas para multiplicar práticas que justifiquem as diferentes formas de violência.
Dizem os livros... mas estes também estão sob a mira dos que não querem saber de nada, a não ser de violência, opressão, ignorância e destruição.
Se, pelo menos por um tempo, sairmos do conforto de acharmos que estamos distantes disso tudo e oferecer algo mais do que ações reflexas que, sem muita demora, nos torna previsíveis em nossas reações, podemos ao menos voltar a sentir “fascínio pelo estranho”, que permitiria uma compreensão melhor da vida e não a perpetuação da falsa superioridade.
Elementos para reagir de forma diferente temos o suficiente, mas seguimos em busca de um mito consolador que acalme nossa angústia e reponha a barbárie em seu lugar na História sem que precisemos sujar as mãos.


Imagem: Frank Frazetta (Heavy Metal Magazine)

Comentários

  1. Setembro mês de mudanças,vento e de boa leitura. Sempre tecendo ideias e conectando fatos. Parabéns!

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