Do ir e vir e não sair do lugar
A acomodação como um novo estado de espírito
Primeiro
passo
Leio muita gente que se diz deslocada ao se identificar
com outra época, do passado ou do futuro – ou seja, que se sente desconfortável
no tempo presente; mas não se anda sozinho por esse caminho: é preciso incluir
a geração inteira, sem querer assumir a liderança do desastre que é estar no
lugar certo na hora em que devia estar.
Leio que a mentalidade individualista e imediatista,
contraposta ao modo coletivo proposto pela geração anterior, é um impedimento
para uma sociedade mais harmoniosa – enquanto a primeira está online, a segunda
preza por um ritmo menos acelerado (embora procure se adaptar para não perder o
trem-bala que vai ao seu encontro).
Leio que 2020 não será um ano fácil de esquecer, mas
muitos farão questão de entendê-lo com um ano “normal” apesar dos acontecimentos
trágicos, alguns inesperados, outros previsíveis.
Leio, ainda, que o “atraso” avança e as saídas
individuais são a nova narrativa.
Não é difícil tirar tristes conclusões quando o mínimo
raciocínio após a verificação de fatos leva a crer que os tempos em que vivemos
são sombrios e pouco ou nada contribuem para aproveitar o que há de melhor: a
vida.
Porque parece não haver espaço nem tempo para viver.
Segundo
passo
O planeta respira por aparelhos e nós sufocamos atrás de
máscaras, tecidas ao longo dos séculos ou manufaturadas diante da emergência
provocada pela mesma razão de sempre: a dificuldade de coexistir sem a
necessidade de levar vantagem em tudo.
Por isso, volta e meia as guerras: depois de exterminar
milhões de pessoas, servem para aproximar os sobreviventes; o caos da Segunda Guerra
Mundial foi superado com a união dos governantes e de organismos supranacionais;
a instabilidade gerada pela Guerra Fria criou um cenário de comprometimento com
a segurança e o equilíbrio das nações; as guerras religiosas no Oriente
serviram para um despertar parcial em relação à pluralidade religiosa; a guerra
dos latifundiários contra os pequenos agricultores e as minorias étnicas, por
sua vez, não oferecem alento, talvez por ocorrerem no... presente.
Agora, uma grande guerra entre o Ocidente e o Oriente
está em silenciosa articulação, mas são tantas e tão necessárias as lutas
diárias que ainda não nos demos conta do desastre que se aproxima.
Há tempos é proposta uma terceira via, seja na economia,
na política ou entre o real e o simbólico, mas parece que não há forças que
sustentem uma “nova narrativa” ou a narrativa que se estabelece é inapropriada
para desacomodar as pessoas diante das incertezas da sociedade.
As saídas tendem a ser individuais ou parecem restritas a
pequenos grupos.
Terceiro
passo
A liberdade, sabe-se, implica em desilusões e, entre
elas, o livrar-se do que já está estabelecido.
No cenário rarefeito das mudanças, sob as máscaras
protetoras e sob a fumaça dos biomas que queimam ao redor do planeta, as
pessoas estão em busca de interpretações místicas e de soluções mágicas para os
problemas que elas mesmas criaram.
Na real, falta ar e faltam palavras para explicar e
suportar a dor, que viraliza por todos os cantos – e que, de forma controversa,
só não é mais visível porque a acomodação, implícita ou imposta, na nova
narrativa social, não permite que a dor tenha prioridade entre as prioridades
de quem, além da população, poderia curar.
Ao mesmo tempo, não são poucas as vozes que afirmam estarmos
próximos de um colapso e que o papel social do indivíduo parece ter se
corrompido; ao mesmo tempo, ainda, a diversidade cultural parece ter
amplificado o racismo, a ignorância e a xenofobia, entre outros sentimentos de
ódio.
Quarto
passo
Pensadores lançam mão dos fenômenos entrópicos para interpretar
os movimentos sociais; chegou-se a afirmar que o momento era “líquido”, pois se
percebia o aumento da “desorganização” dos elementos constitutivos da rede
social, expressa, enfaticamente, pela mobilidade frente ao sedentarismo até
então estabelecido.
Uma súbita, mas não menos previsível interferência biológica,
interrompeu o nomadismo físico e transportou o indivíduo para as redes sociais,
e este se vê às voltas com o que ora se classifica como um psicovírus, que se
instala nos discursos cotidianos e desagrega, individual e socialmente, ao
mesmo tempo em que permite que todos tenham a última palavra e que muitos se deem
o direito de se proclamarem os salvadores, contra a ciência, contra a própria humanidade.
O progresso histórico encurtou os horizontes e, com isso,
tornou urgente e efêmera a existência – das coisas e das pessoas.
Nisso, fico a pensar qual será a minha última palavra.
Quinto
passo
O reencantamento do mundo está além desse horizonte, com
pouca poesia e quase nenhuma perspectiva.
“Não há futuro humano, no sentido humanístico da palavra ‘humano’.
O futuro imaginável não é vivível”, afirma o filósofo italiano Franco Berardi;
e “quando não há futuro, como pode haver pecado?”, esbravejava Johnny Rotten à
frente dos Sex Pistols, em “God save the queen”.
Se não é difícil concluir que “o mundo já foi melhor” (e
o quanto nisso há de relativismo, forte ou fraco), também não é difícil
concordar que hoje tudo parece apenas fotografias nas paredes, e as imagens
televisivas e virtuais que mostram a dor, a miséria e o desespero de milhões servem
apenas para lembrar a superioridade do aqui-agora, neste ir e vir que não nos
leva a lugar algum, pois se assemelha a uma ideia de convivência que não representa
projeções de um mundo melhor.
Novos tempos, novas doenças – como achar “normal”
devastar biomas inteiros para ganhar dinheiro em nome do capitalismo, num capítulo
sem precedentes na infâmia da história.
Mas deixo de lado as notícias para encontrar a poesia no
sol do domingo que ainda mantém as temperaturas da estação, e que podia ser melancólico
apenas por ser domingo, não por ser o prenúncio de mais uma semana que tende a
somar-se no calendário do fim do mundo.
Ilustração: Yuval Robichek
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