No apartamento


Da minha janela, enxergo poesia, o pôr do sol, a beleza das pequenas coisas, a alegria, a solidariedade e a esperança a circular pelas ruas. Mas.


Caixinha 1


O mundo não parou como deveria e as necessidades domésticas e as exigências profissionais fazem com que, em alguns dias da semana, seja preciso ir ao encontro da cidade.

Que já não é mais a mesma, diga-se de passagem.

Imagino ser impossível negar que exista um alívio neste movimento.

Uma coisa é ficar em casa, envolvido com as coisas que te dizem respeito – teus livros, teus afazeres cotidianos (aqueles que o tempo reclamava), as coisas que tu gostas, as lembranças que tu guardas em caixas caixinhas caixões; teu silêncio – pelo gosto e pelo prazer de um gesto de liberdade

Uma coisa é usufruir do sentimento de liberdade que fazia com que, a hora que bem entendesse, tu saías às ruas e caminhava pela cidade sem precisar se preocupar com o futuro da humanidade – bastava apenas cuidar onde pisava, bastava somente ter cuidado ao atravessar as ruas, bastava simplesmente estar atento e forte em cada esquina para não ser surpreendido.

E por falar em surpresa e em esquina: entre janeiro e agosto de 2020, mais de 105 mil novas armas foram registradas por cidadãos comuns e servidores que têm o direito de adquirir uma.

Na última sexta-feira, o céu, que era para estar azul e sem nuvens, ficou encoberto; na verdade, nenhum mistério, apenas a fumaça originada das queimadas que ocorrem no Pantanal – que já tem quase 15% do bioma consumido pelas chamas – e que avançam sobre o Oceano Atlântico, num corredor de vento que se origina da Bolívia e traz muita fumaça também da região amazônica e dos países vizinhos.

E o risco de fogo em grande parte do Brasil, somando altas temperaturas, o tempo seco e a bandidagem, é muito alto.

E já morreram mais de 130 mil brasileiros pela covid-19, sendo mais de 4 mil no Rio Grande do Sul e mais de 100 em Caxias do Sul – mais do que estatísticas, um debate difícil de levar adiante com quem acredita saber de tudo.

Entre um espanto e outro, fica cada vez mais cansativo – e assustador – ouvir e ver pessoas que insistem em uma volta ao “normal”.


Caixinha 2


Uma pátina parece cobrir a superfície das coisas, como se a ação do tempo tivesse provocado a decadência de determinadas relações entre os seres humanos e a deterioração de vários significantes.

Mas, é sabido, o senso comum opera com a aparência das coisas.

Assim seguimos, confinados, pero no mucho; indignados – nunca o suficiente.

Na medida em que as sociedades recusam a compaixão de seus governantes, ou a perde, torna-se mais acentuada a força destas figuras que, paradoxalmente, são conduzidas à condição de decidir o presente e o futuro, pelas mesmas sociedades – que os veem como salvadores da pátria; o que muda é a perspectiva do olhar e a racionalização dos meios de dominação.

A liberdade é hierárquica, a força criadora não – no quarto escuro ou ao pôr do sol, em um daqueles momentos de interiorização, todos somos capazes de criar além da mentira e da coerção que o cotidiano tenta impor.

“A origem de toda a criação reside na criatividade individual”, escreve Raoul Vaneigem em A arte de viver para as novas gerações (2002, p. 203).


Caixinha 3


Pensar é reunir e selecionar informações, unificar e sintetizar; transformá-las.

É uma atividade distinta, pertinente ao ser humano, que ocorre quando estamos cientes das coisas que “acontecem em nós”, mas que também representa aquelas que “estão fora de nós” – é o conceito mais comum dos conceitos, pois inclui o pensamento intuitivo.

Neste pensar com o que está “fora de nós”, por vezes há a submissão à ditadura da opinião, que resulta num pensamento único.

No final do século XX, passou-se a considerar uma outra alternativa: o pensamento fraco; não no sentido de oposição a um pensamento forte, mas com a perspectiva niilista de abrir mão das certezas e não ocupar-se com novas totalidade.

A modernidade nos trouxe a liquidez do pensamento, mas reacendeu as mesmas questões: a satisfação do desejo narcísico de pureza e novas formas de limitar a liberdade – a todo instante somos induzidos a preencher vazios, a escolher uma vítima sem medo da vingança ou da punição, em rituais contestados em redes sociais, mas praticados nas ruas e entre quatro paredes, reforçando o caráter precário da gregariedade.

O eterno e imutável é também universal e a aceitação disso não se dá pela reconciliação ou por um acordo entre opiniões, assegura Bauman (2001).

Que saco!


Caixinha 4


Tudo volta, é só esperar, tudo volta.

O passado nunca termina e isso é perceptível a cada amanhecer.

Não há como apagar os sentidos dos gestos que fizemos, das nossas atitudes, do nosso pensamento.

Tudo está aí: a violência, a intolerância, a repressão, os imbecis, as crenças cegas e os anátemas religiosos.

Tudo está aí: a poesia, o pôr do sol, a beleza das pequenas coisas, a alegria, a solidariedade e a esperança.

Como sempre, cabe a nós a escolha.

Às vezes me pergunto se a liberdade é difícil porque vivemos com medo, pequeno ou grande, de sermos descobertos por não sermos de fato o que somos.

Mesmo no tempo que dedico a fazer faxina no apartamento.


Caixinha 5


Do Cadernos Inéditos, de Itamar Assumpção (1949-2003), um trecho de “Sou Brasileiro” (2013, p. 104).


“Sou brasileiro curtido, maduro, maior de idade.

Sou estradeiro perdido, procuro a felicidade.

Anos vivo na intensidade, minha sombra se move

Por entre as ruas, por entre o caos da cidade [...]”

 

 

* Sobre a ilustração da crônica: Alerta, desenho sobre papel colado em tela, de Nelson Ramos.

Comentários

  1. Sabes, ainda bem que não sabem como realmente somos. Imaginas ,se soubessem. Liberdade .🍀🌼

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