Um
lugar para se emocionar
Mesmo sobre ruínas, por que não agora?
Lugar
1
Sempre ouvi dizer que a mentira tem perna curta, o que
alguns protagonistas miméticos dos dias de hoje insistem em querer desmentir.
Faz horas que somos enganados, engambelados, iludidos,
enredados, engazopados e não sei o que mais, por uma narrativa delirante que,
na maior parte dos trechos, supera o absurdo – e experimentamos duras consequências
cotidianas, pois tudo parece contrariar a expectativa lógica.
A “construção da verdade”, como midiaticamente assistimos,
tem resultado em monumentais distorções, já que o cansaço físico de grande
parte da população se sobrepõe ao exercício do pensar; uns apenas cansam de
respirar por trás das máscaras, outros estão exaustos por redobrar os esforços
e tentar evitar que a ignorância predomine, muitos sempre estiveram.
Seja exagerando a verdade, seja diminuindo-a, permanecemos
diante de secular paradoxo: quando se diz a verdade, mente-se, quando se mente,
se diz a verdade.
Lugar
2
Especialistas de diferentes países asseguram que até o
fim de 2021 ainda usaremos máscaras para nos proteger do coronavírus.
– Diariamente, há tentativas de desmenti-los.
Profissionais da saúde e administradores públicos orientam
para que sejam evitadas aglomerações, ambiente que favorece a disseminação do
vírus.
– As praias e os hospitais dos centros urbanos indicam o
contrário; na segunda metade de setembro, o Brasil é o terceiro país
latino-americano com o maior registro de infecções do coronavírus e ocupa o
segundo lugar no ranking do número de mortes.
Esse costume de desacreditar o que está fora de nosso
controle e/ou da nossa compreensão vem de muito tempo e se encontra também
entre os habitantes desses lugares que existem em nós.
– Os gregos mediram a circunferência do planeta, e o
navegador português Fernão de Magalhães realizou a primeira circum-navegação,
comprovando que a Terra é redonda; azul, diria séculos depois o astronauta
russo Yuri Gagarin.
Num país que se desfaz, onde cada vez mais se torna
impossível discutir com quem acredita saber, há quem afirme que a Terra é plana,
mas crava as unhas na borda com medo da queda.
Lugar
3
Claro que nem tudo é tristeza, nem poderia ser – os
paradoxos nos assombram durante o dia mas nos encantam enquanto dormimos; e o
contrário disso também é verdade.
Ou não.
Faz parte da educação, já disse Nietzsche, ensinar a ver;
mas uma visão perfeita não garante que se veja o que está adiante dos olhos.
Na pedra que Adélia Prado viu, Drummond enxergou um
poema.
Nossa crença nas palavras ultrapassa o ir e vir da
verdade; o esquecimento contribuiu para mudar o significado das coisas; para
Nietzsche, a verdade é uma ilusão, é metáfora que se desgasta com o tempo e
pelo uso.
Por isso, também se diz que a mentira repetida se torna
verdade, pois a palavra é uma convenção; a aceitação pura e simples de que a
história é apenas um fluxo narrativo pode causar danos.
Muito do que vivemos atualmente, na sociedade, na
economia e na política, já provocou dramas emocionais e prejuízos materiais a
muita gente; o individualismo, a recessão e o fascismo não começaram na semana
passada.
Ver apenas uma parte da realidade é contentar-se com a
insignificância da existência: a sombra e dissonância precisam ser
compreendidas.
Mas é preciso educar o olhar.
Lugar
4
Em 2003 foi criado o termo Efeito Streisand, originado de
um processo movido pela cantora estadunidense Barbra Streisand contra o
fotógrafo de um site que publicara uma foto da mansão da atriz, entre mais de
10 mil fotos da área; a foto se tornou uma das mais acessadas na internet – a
tentativa de censura chamou ainda mais a atenção e repercutiu além do esperado.
Dizem ser um fenômeno social, mas assim como a mentira torna-se
uma patologia pós-moderna, parece ser apenas uma maneira acadêmica de dizer que
não se mete a mão no vespeiro sem necessidade; é um movimento que os físicos exemplificam
com a pedra jogada na água e pelas ondas que são provocadas na superfície líquida;
é o tal Efeito Borboleta teorizado por Edward Lorenz para os sistemas dinâmicos
e adaptativos.
Qualquer nome ou explicação que se dê servirá para
entender um pouco do cenário que vivemos.
As decisões tomadas por milhares de pessoas deram o poder
para que um grupo as representasse; este poder gerou um tal desequilíbrio que,
por sua vez, provocou uma tensão que parece não ter mais fim e, mais, parece
estar em desacordo com a evolução e a harmonia; epidemias e catástrofes
naturais, desorientação e negações apenas corroboram.
Lugar
5
Consciente ou não, o sentimento que resta é o do
“absurdo”, em que a vida e o homem parecem incompatíveis.
Diante dos problemas práticos e tecnicistas, em cidades que
se adaptam para as necessidades contemporâneas, muitas questões voltam a ser
românticas e a poesia é um dos recursos que nos ajuda a prosseguir – a sociedade
e o “mercado” também oferecem várias alternativas e soluções, diga-se de
passagem.
Se conseguíssemos um distanciamento intelectual de tudo
que ocorre ao nosso redor, poderíamos afirmar que este é um dos momentos raros a
que a humanidade é submetida, por forças cósmicas, espirituais, teológicas ou o
que seja, a rever seu comportamento; no frigir dos ovos, chegamos aonde
chegamos por escolhas mais ou menos acertadas, mais ou menos equivocadas.
Talvez conseguíssemos lidar melhor com a dor e as perdas.
O momento de distanciamento também permite rever/acentuar
a importância da poesia em nossas vidas e na construção de um entendimento
melhor do mundo e das pessoas, com quem convivemos, querendo ou não.
A partir dela, podemos “ver/ler” o outro; ela permite que
diferentes vozes encontrem ouvintes/leitores com diferentes graus de
apropriação do que está sendo dito; ela reforça a necessidade da luta
existencial, manifesta pela palavra
A poesia pode ser experimental, sentimental, prosaica,
mística ou metafísica e outros quetais, mas, sendo o que é ou que pretende ser,
ela fortalece nossa resistência com sua força política intrínseca, subjetiva ou
difusa, lenta e silenciosa como um ladrão na madrugada; contra a negação dela mesma
e em favor do coletivo, para nunca nos deixar esquecer e fazer com que as próximas
gerações também não esqueçam deste momento, tão triste e, por vezes,
desesperançoso.
A poesia não como simples resposta ou fuga, mas como
provocação de independência, do fortalecimento de espaços onde seja possível se
emocionar e que seja possível, também, “fazer diferente”.
Ler para construir significados a partir do conhecimento;
escrever para processar o espanto e o absurdo.
Talvez nunca tão importante quanto agora: com esses movimentos,
podemos argumentar melhor para transformar os habitantes dessas cidades e reerguer
um mundo diferente destas ruínas que ora vivemos – eles nos ajudam a perceber
as pessoas e ajudam a dar suporte para uma mudança.
“E se não agora, quando?”, perguntou o Ancião; viver também é existir.
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