A poeta TELMA SCHERER, natural de Lajeado (RS), nasceu em 30 de abril de 1979. Autora performática, publicou sete livros, sendo seis de poesia – o primeiro, Desconjunto, é de 2002, pelo Instituto Estadual do Livro (IEL), o mais recente é Squirt, de 2019. Suas pesquisas poéticas, explica, abordam “a poesia expandida, nas suas múltiplas manifestações e interlocuções com a performance”.


Entre suas performances, Rumor da Casa, que integrou o projeto Estação de Leitura Social (SESC-SC), a programação da Sala Álvaro Moreyra e da Feira do Livro de Porto Alegre (RS), da Bienal de Arte e Cultura da UNE (SP), e do Psiu Poético, em Montes Claros (MG); Não alimente o escritor, uma intervenção urbana solo, em Porto Alegre (2010), e o Sarau Cênico, com o grupo Laboratório de Atuação, realizado no Hospital Psiquiátrico São Pedro, também em Porto Alegre (2004).

* * * * *

os milicianos mataram Marielle,
mas eu estou aqui.
os militares mataram Marighella,
mas eu estou aqui.
são paramilitares, corrigiu o fugitivo.
concordo com ele, e não fujo.
eu já estava aqui quando mataram Lorca,
falando seu último poema
na morte, na madrugada
eu morri, mas estou, porque eu sou aquele que
eles não mataram quando me fuzilaram
em frente ao paredão das suas notícias falsas.
mataram, sim, mataram
sessenta por cento
dos homens escravizados
que vinham nos navios, enjaulados,
depois entregavam os corpos ao relento
uns sobre os outros, os pretos novos,
como em Auschwitz – nossa Auschwitz,
disse a dona do terreno onde
construíram uma casa, sobre os corpos,
sobre os ossos
– ela comprou uma casa colonial, nossa casa, disse,
no centro do Rio de Janeiro, em cima do cemitério
– assim são os milicianos, penso, assim,
no fundo das favelas do Rio, penso, escondidos
táboas sobre o cemitério, cimento sobre as fundações
e é por isso que se há de se exercitar, ele disse,
subir e descer correndo
as escadas e os barrancos, ele disse,
cada um com a sua arma, ele disse,
como em Auschwitz? a arma de Primo Levi
era saber de química
– a minha arma é saber que não sei se
a minha prima fez o aborto e
a arma dela é achar ruim ter feito o que
não fez, ou seja, não ter feito o que fez
era o seu sonho
à sombra da família brasileira
o feto tradicional
considerado abortado
por todos, quando nasce
em escadas e barrancos que se há de querer subir
assim, correndo,
todo o brasileiro tem que ter a sua arma
disse Marighella
dizem os milicianos
que só os homens de bem vão comprar armas
mas os comunistas é que eram assassinos
dizem, os comunistas que usavam
essas metralhadoras
que se decompunham de engembradas
ao primeiro assalto, assaltavam, eles terroristas
de primeira página,
os comunistas atiravam para matar, eles dizem,
não mataram García Lorca, eles dizem,
não mataram Marielle, eles dizem,
ela mesma que se matou, era gayzista, aborteira
e não era como a minha prima
que fazia a família inteira acreditar
que ainda era tradicional e
não era branca como os pretos que querem
a volta
da família tradicional
– eu sou a favor, ele disse, a favor da família,
da vida, do futebol, da mulher, da cerveja, ele disse,
da família de Naa Agontimé, digo,
família de Aqualtune, digo, liderando os homens
com suas armas, digo, família Ganga Zumba
sambando na cara da família, digo,
família de Zumbi, se existe amor em SP, digo,
ainda existe amor em SC? ainda existem os nazistas?
quantos mais têm que morrer?
são a favor das famílias de martírios
são os que matam Marighellas
a mando de um carro
em plena perseguição
os policiais não viram que eram só cinco garotos
pobres pretos celebrando – em plena perseguição –
o primeiro emprego
os policiais não viram
que matavam Marielle,
que me matariam, os milicianos não viram
que matavam Lorca, as
mortes na madrugada têm essas caras, sem os óculos,
as mortes de pretos novos, cinco, cinquenta por cento
de astigmatismo no meio da avenida, digo,
mortes abertas, limpas, sãs, civis, quais?
– ocas como esse soslaio do homem tradicional
subindo correndo escadas e barrancos, pesando barras,
desejando anal, desejando um comandante,
desejando ser aquele que
quer bem a um comandante, qualquer comandante
que não estava aqui quando me mataram.
Eu já estava aqui quando me mataram,
e renasci na voz dela dizendo que
os milicianos mataram Marighella,
que muitos morrem,
têm que morrer? quantos mais têm que morrer?,
mas eu estou aqui, eu já não estava,
eu já não estou aqui, eu sou
uma espécie de último poema, fazendo com os fuzilados
o que fizeram com o meu sangue, digo,
porque eu fervo antes de transbordar.

(outubro, 2018)

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