QUANTAS
QUADRAS ATÉ O CORAÇÃO?
Ou, quantos versos são precisos para lembrar?
QUADRA
UM
A poesia, poesia, é o que pode ser ou não ser.
Ocorre a partir do exercício da palavra e também da
primeiridade.
Limitado às janelas cibernéticas, temo que a cidade me esqueça
enquanto eu me perco em nodes virtuais
ao redor do mundo.
Sem dialogar in
loco com as esquinas, sem percorrer as suas ruas, rememoro dias que amanhecem
sob lembranças enevoadas em um domingo oco, em busca de um verso que
ressignifique o isolamento.
Percorro, ficcional que sou, as calçadas das ruas de
Milton Santos, Richard Sennet, Witold Rybczynski e Nelson Peixoto Brissac, para
não perder de vista o encanto da cidade, que, “mais do que lugar de encontros
acidentais, espaços do efêmero, ou pontos de cruzamentos”, “é ambiente de
mudanças, de rupturas, pontos focais da comunidade intelectual”, como me ajuda
a lembrar Ricardo Cordeiro Gomes em Todas
as cidades, a cidade.
Mo(vi)mento empírico.
QUADRA
DOIS
Pois é, a poesia como vir-a-ser.
Em alguns momentos temo esquecer a cidade que conheço e a
sua humanidade.
Ser esquecido na alteridade.
Revejo as saídas encontradas para outras ocasiões em que
estivemos por um fio.
“Nada de novo há no rugir das tempestades”, bradava
Maiakovski, injetando sangue e poesia sob sua camisa vermelha.
Às voltas com o efêmero, sob a primazia do consumismo,
assistindo ao atropelamento dos fatos por optarmos pelas incertezas
pós-modernas e outros tatibitates; me angustio em silêncio – o vazio.
Tudo normal em uma espécie de normalização à Trevisan.
Parece vivermos uma uniformização perversa, esquecendo
que somos humanos e, portanto, portando diferenças entre um e outro.
A cultura como método de padronização só é benéfica para
quem tem em vista o totalitarismo.
QUADRA
TRÊS
A poesia institui novos limites entre a desconstrução e a construção.
A beleza pode ter o caráter construído, dizem; e que a
existência antes da verdade é uma possível forma de pensar o mundo.
O que precede: o sentido ou a consciência?
O que procede?
O acaso não é apenas
um achado, já que está para a
necessidade como um processo dialógico.
O homem luta contra ele por um instante, não mais do que
um ínfimo instante.
E nesse instante, quase sempre poético, nomeia as coisas
concretas e não-concretas que o constituem.
QUADRA
QUATRO
A maneira como o poeta lê o mundo ao seu redor e além dele, implica no sentimento a ser despertado.
Se as coisas em nosso mundo estão postas, é o ser
sensível de cada um que faz enxergá-las de maneira diferente.
A poesia está implícita na borboleta de Haroldo, que
“nascemorre” e nos leva a outras paisagens.
Nos caprichos de Leminski,
nas errâncias de Pignatari, na “linguaviagem” de Augusto; nos desvarios de
Mário e na antropofagia oswaldiana; na urgência de Torquato e de Rimbaud; na
delicadeza à flor da pele de Ana C. e nas pequenas elegias de Olga; na
concretude de João Cabral e nas multidões de Baudelaire; nos mergulhos de Bashô
e nos silêncios de Alice; no não-pertencimento de Arnaldo.
Sobre o asfalto, a poesia
urbana nos lembra que há soluções, ainda que não nos deixe esquecer dos
problemas, pois também é enfrentamento, é crítica; está nos coletivos, está no
canto para os esquecidos de Criolo e Milton Nascimento, nas contradições de
Cohen; é “apenas mais uma noite igual às outras” para Tom Waits e para mim
também.
A poesia entra nos becos, atravessa rodovias, foge dos
automóveis e se esquiva de balas.
Circula pelos shoppings nas igrejas nas câmaras de
indústria e comércio; nos velórios esvaziados, nas manifestações distorcidas, em
tantos rituais e razões, e no anacronismo do début.
QUADRA
CINCO
Enquanto o isolamento se materializa nas rotinas, a poesia é uma das possibilidades que o ser humano, ficcional que é, tem para imaginar o futuro.
Poesia não se consome, nem é consumida.
A poesia extirpa o desumano, faz nascer um novo homem.
A poesia estripa o cadáver frio até encontrar a medula.
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