Enquanto
ouço um bando de sereias loucas*
De dentro do isolamento, uma palavra é suficiente
EM
BUSCA 1
Estamos à procura de um lugar, e nem sempre ao sol.
Estamos à procura de uma saída, mas é importante que ela não
nos leve ao abismo.
Estamos à procura, talvez sem saber exatamente do quê,
mas em busca de algo, diferente das panaceias que a vida moderna tem oferecido
ultimamente.
EM
BUSCA 2
Comungo na primeira pessoa do plural, pois reconheço que,
só por mim, não tenho força nem capacidade para indicar o lugar – às vezes, nem
disposição.
Escrevo conectado, pois sei que não navego sozinho em
direção a um presente melhor, para que seja possível pensar um futuro para um
país que hoje se encontra dividido e doente – física, mental e emocionalmente.
Penso no glocal, porque as ações isoladas funcionam
quando desencadeadas, ainda que pareça pouco; se elas tardam ou se concretizam
aquém do esperado, talvez seja porque as propostas geradas individualmente, ainda
não encontraram o seu tempo de provocar mudanças.
EM
BUSCA 3
O tempo e o que se move e o que parece que não.
Nessa busca, recarrego minhas energias e meu parco otimismo
na arte, assim como o surrealista Artaud, que acreditava que a arte sempre está
a dizer algo – quem sabe aí o lugar que tanto buscamos...
A arte é um “lugar”, de formações e de deformações, que
os repetidores pobres de espírito, que tanto mal causam à cultura, não entendem
e ao qual não podem chegar.
Vivemos um momento em que as ideias estão dispersas, mas
em que vemos esforços em todos os recantos do país em direção a um desfecho
para o terror que tomou conta do cotidiano.
As plataformas digitais têm sido aliadas, e quero crer
que as vozes que se concentram nelas, direcionadas para o Bem, hão de resultar
em um estado de espírito mais leve; é o máximo que me permito projetar para o
futuro.
Em alguns momentos do dia, o medo, esse afeto que turva
as necessidades, que mina o interesse pelas coisas belas, tenta ultrapassar o
limite da experimentação e quer dividir o lugar que habito.
Um dia às vezes é mais difícil do que o outro, e
reconheço que, a cada novo desejo que toma conta do meu peito, outros medos se
manifestam.
Nem por isso, negarei o medo – na mesma medida em que não
estou disposto a viver sob a perspectiva de um futuro solapado.
Não negarei o medo, não cederei ao medo, pois tenho
certeza de que, ao lidar com ele, posso viver para novamente ver as maravilhas.
EM
BUSCA 4
Por isso, nunca o coletivo foi tão necessário e nunca foi
tão controversa a imagem que temos dele, diante de ações governamentais que
impulsionam rivalidades e aniquilam; estimulados, ainda que inconscientemente, alguns
destroem lavouras à força, põem fim a sonhos à canetadas, de maneira planejada,
encerram vidas inteiras com a simulação canalha de humildade e colaboração.
Já que estamos temporariamente condenados ao isolamento,
vindos de outro tipo de isolamento – que as próprias redes virtuais provocavam
–, em que é preciso remodelar modos de viver, é também o momento propício para repensar
atitudes.
Na tal normalidade, procurávamos encontrar alguma coisa
nos olhares com que costumávamos nos cruzar pelas ruas da cidade.
Como faz falta o olhar em trânsito, como faz falta o
toque, como faz falta a alegria da convivência!
Felizmente, o que não falta é a criatividade e a emoção,
ainda que protegidas por máscaras, reais e pressentidas, na tela do celular ou
de outra geringonça eletrônica qualquer.
A arte, ainda que fragmentária, tem o poder de amalgamar
nossos sentimentos; a arte, por si, faz com que deixemos de caminhar apenas em
linhas retas e nos encantemos com os desvios.
Provavelmente com fissuras.
EM
BUSCA 5
No fundo, eu sempre soube
Que eu alcançaria o amor
E isso seria
Um pouco antes da minha
morte.
Sempre tive confiança,
Não desisti
Bem antes da sua presença,
Você me foi anunciada.
É isso, vai ser você
Minha presença efetiva
Estaria na alegria
De sua pele não fictícia
Tão doce a carícia,
Tão leve e tão fina
Entidade não divina,
Animal de ternura.**
Enquanto leio e sinto a solidão, procuro uma saída,
procuro um lugar, procuro, e não é pouco o procurar.
Pela palavra, pelo caminho a caminhar, ainda hei de
encontrar.
Vivencio os dias, que passam lentamente; tenho ciência de
que a exploração da Terra está próxima da entropia, alguma noção de que o lado
mais perverso da humanidade ocupa boa parte das nossas preocupações e cuidados;
tenho consciência de que do jeito que está não dá mais.
As notícias não são nada boas e minhas escolhas não
coadunam com a isenção, ainda que possa parecer o contrário.
Luto com o que posso e contra o que posso, ao lado de
quem luta comigo, e fico em luto com o que gostaria de mudar e não consigo.
Navego num mar de dúvidas, oceano que nunca foi só meu, mas
uma vez me encantava ouvindo Walter Franco descrever a vastidão e a “branca
visão que desperta”.
Fora do tom, um bando de sereias loucas gera
interferência na sincronicidade do espaço-tempo.
Por ora, uma quadrilha hiperbólica e ensandecida está nas
ruas e nos poderes, e provoca os deuses nos becos, nas esquinas e nas
não-esquinas.
Um poema pode significar a convergência na dispersão.
Sei que ainda não encontrei o que procuro, mas não
desisti de procurar.
* Ilustração de Hugo Pratt.
** (“HMT”, parte I, de Michel Houellebecq, em As imediações do vazio (poemas), traduzido por Jardel Dias Cavalcanti. Galileu Edições, 2019).
Comentários
Postar um comentário