Entre a finitude e o absurdo
Apenas uma forma de ler o mundo
Porta
1
Era um lugar diferente, com um futuro brilhante: ser
gigante.
Era pra frente, tinha palmeiras, os sabiás gorjeavam e
faziam ninhos e as pessoas sonhavam.
Tinha muito samba, choro e rock’n’roll.
Era uma gente contente, sem muita memória, mas que sempre
dava um jeitinho e a vida era um carnaval, com muita fantasia, paixões e
leveza.
Era um povo místico e amoroso, embora a convivência nem
sempre fosse pacífica; a gentileza ainda predominava, embora pouco se compreendesse
sobre a cordialidade que revelava o caráter daqueles homens.
Foram décadas de esperança, e a maioria, desprevenida,
não estava preparada para se defrontar com seus piores pesadelos.
No momento, quase não conseguimos realizar os mais
simples desejos, e o que obtemos são apenas explicações para a impossibilidade.
E só piora, quando sabemos que até as coisas simples apresentam
um grau de dificuldade que as torna mais difíceis de serem realizadas.
Nem era uma utopia – mas agora cada hora é distópica.
Porta
2
Enfim: vive-se e morre-se um pouco a cada dia.
Quando perdemos alguém ou quando nos perdemos de alguém;
quando desistimos, quando esquecemos, quando somos obrigados a fazer o que não
gostaríamos.
Assim a cidade.
Quando uma referência é perdida, quando uma rua é
interditada, quando o bar preferido fecha as portas, quando a livraria que
reservava o livro mesmo que não fosse pedido é só lembrança, quando os espaços
culturais são abalados por forças exógenas, quando a natureza é violentada pelo
interesse imobiliário – quando se queimam prédios ou se derrubam árvores ou se
testam resistências.
Em 1994, a esquina da Pinheiro com a Montaury foi, durante
a noite, tragicamente modificada, talvez hoje pouco referenciada: um
cine-teatro histórico, belo e imponente, transformou-se em um feio e prepotente
edifício-garagem; em 2020, a calçada da avenida Júlio, próximo à 13 de Maio,
também foi castigada por implacáveis chamas, que assustaram moradores e
proprietários, mas não provocaram tantas lágrimas e indignação – mas, afinal, o
que eu quero reivindicar com isso? os tempos são outros.
Ao contrário da experiência humana, que deixa de ter
visibilidade, a cidade não morre; ela muda, felizmente, também para melhor – o
complexo da antiga Cantina Antunes, que tanta alegria e prosperidade proporcionou,
com seus mais de 100 mil parreirais, é um exemplo de persistência administrativa
e de humanidade.
Porta
3
Frente à frente com a finitude e com o absurdo.
Às máscaras que sempre foram usadas como recurso para uma
vida pretendida, nem sempre vivida, foi acrescida uma nova máscara, agora
física.
E o sofrimento, que muitas vezes foi transformado em poesia,
agora é virtualizado e/ou faz vítimas entre quatro paredes, em silêncio e
desconhecimento.
Olho pela janela e releio Paulo Hecker Filho (1926-2005):
“A rua está repleta e está vazia”, enquanto planejo um amanhã possível.
Porta
4
E para este amanhã possível, tanto se escreve, se fala e
se ouve sobre reinvenção.
Sobre novos paradigmas – mas a hesitação é grande e o
risco de nunca haver um “novo” é grande.
Tem também Kerouac: “O segredo do tempo é o momento, quando
correm ondas de grande expectativa – ou o próprio momento da ‘elevação’ quando
tudo é resolvido.”
Difícil imaginar cenário harmonioso em um planeta com
quase 8 bilhões de indivíduos, obsessivo em crescimento econômico, tecnológico e
em ações individualistas.
Mesmo com todo o conhecimento adquirido.
Mesmo que vejamos um crescente de manifestações
solidárias.
Há novos picos de infecção e há o agravamento de um
problema que, às vezes, parece que não faz parte do cotidiano e da cota de
responsabilidades de cada um; embora tenhamos consciência de que falta
liderança, a solidariedade não é suficiente frente ao absurdo.
Problemas que sempre existiram foram potencializados: a
pobreza, o racismo e a ignorância.
Riqueza nunca teve a ver com dinheiro e a sustentabilidade
dos sistemas é posta à prova a cada amanhecer, que poderia significar
esperança, mas hoje gera angústia para milhões, que desconhecem como o dia irá
terminar.
E preciso se reinventar; mas a urgência de uma solução é
tamanha que, em alguns momentos, a imaginação tem voo breve – como vidas, como
as folhas amareladas que cobrem o chão.
Porta
5
Ironia?
Nem tudo está perdido quando resta uma esperança – da
fábula para os mantras dos coaches.
Desde que lembro, lendo; em busca de um lugar, à procura
de um sentido.
Adolescendo, amadurecendo, envelhecendo; lendo.
É uma ideia, é um modo, é um propósito que não serve para
todos; é até egoísta pensar e querer que todos leiam.
Uns não têm acesso, outros têm preguiça, outros não foram
estimulados, tantos não querem.
Há queixas de escritores, de editores, de livreiros e de
leitores.
Todas pertinentes, quando em perspectiva; diga-se de
passagem, a vida não é estranha.
Estranho é, este universo em que vivemos, cheio de maravilhas,
de bilhões de galáxias a descobrir, ainda há gente que insista em apequenar a
existência e negar o propósito da leitura e do livro.
Rebeldia, resistência, desobediência – leio.
Apenas vontade de romper com tudo o que não [me] faz bem.
Apenas querer e ter o direito de realizar os desejos mais
simples, sem muita explicação.
... desabafo... de uma pessoa... de todas nós... pessoas.
ResponderExcluirGracias, comparto ese sentimiento.
gracias, verônica!
Excluirgracias, verônica!
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