Para
onde vão os faróis dos carros?
A dúvida se instala num tempo real
Dia 1
ou 2
Entre uma fala e outra, entre o negacionismo e a
esperança, entre a solidariedade e o cinismo, mantenho as janelas abertas para
que os ventos da estação façam sua revolução.
Sua particular revolução, que nada mais é do que uma
resolução tomada pela manhã, às vezes em forma de oração, outras em forma de
reconhecer “a dor e a delícia de ser o que é”, entre um e outro gole de café
preto forte.
Mesmo com tantas manifestações, no calor de tantos
sentimentos expostos, em algum momento a dúvida é apresentada como uma condição
negativa; fica difícil o aprendizado quando tantas certezas tomam conta de
corações e mentes, e passamos o dia sob o fogo cruzado e a histeria de
desgovernos e de parte da população, como se não identificássemos o inimigo,
que nem se camufla e nunca dorme.
O processo é cansativo – lavar louça é da ordem dos dias,
lavar compras já é quase uma neurose.
Os dias parecem que não terminam e as noites são breves.
Faz frio e chove.
Às vezes, escrevo, noutras, me calo; têm dias que o
abismo é profundo, têm dias que a fissura põe em movimento a intensidade da
poesia que alimenta o espírito.
Têm dias sim, têm dias não.
Têm dia branco, e, “se branco ele for, esse canto, esse
tão grande amor, se você quiser e vier, pro que der e vier, comigo”, podemos
pensar na possibilidade.
Dia
2 ou 3
Leio que a verdade não tem como ser pré-determinada.
Penso que talvez ela só possa existir assim; logo ali, o
que foi afirmado como “verdade” pode ter a premissa contestada.
E aí recomeçamos, porque encontraremos novos modos de
dizer a verdade ou sobre ela.
Por estarmos num período em que o panorama é ainda mais
instável e novas situações mediam as ações de cada um, seria estupidez
pensarmos o amanhã a partir dos paradigmas a que nos acostumamos.
A busca da verdade acentua a inquietude.
Ou deveria.
De algumas coisas precisamos mais: leituras,
competências, humanidade e uma classe dirigente que pense.
De outras, precisamos menos ou não deveríamos precisar:
assistencialismo de vitrine, corporativismo desarticulado, burocratismo,
incompetências e uma classe dirigente que tergiverse.
Certeza é o que não há, isso é certo.
Dia
3 ou 4
O encompridar dos dias e a suspensão das noites mágicas
oferecem um novo modo de ver a vida.
Não era bem o que eu tinha em mente enquanto circulava
pela cidade.
Quando a urgência do tempo existia apena na poesia, ou
que eu pensava que era assim.
Quando eu ainda tinha a liberdade do pensar não
condicionada às limitações e restrições das capacidades humanas.
De suas perversidades e maledicências.
Quando apenas caminhava e cantava e seguia em busca de
uma melhor versão de mim mesmo e do mundo.
Hoje, não caminho tanto quanto eu gostaria, mas a cidade
se mantém viva na palavra e nas lembranças, e uma versão melhor de mim mesmo e
do mundo ainda tem como prerrogativa viver da melhor forma possível, do ponto
solitário em que escolhi para expandir o que sinto pelas pessoas e pelas coisas
– terra e céu, divinos e mortais.
Dia
4 ou 5
Escrever, entre outras coisas, ajuda a percorrer a
distância que existe entre nós.
Tu aí, e eu sem saber o que fazer com o que sinto em
relação a isso.
Talvez não soubesse se estivéssemos num café, aqui, em
São Paulo ou numa rambla de
Barcelona.
Essa dúvida também me inquieta.
O que sei é que, ao escrever, consigo traduzir alguns
sentimentos e faz com que eu imagine cenários onde estamos em silêncio, por um
tempo livres de palavras e de gestos automatizados.
Imagino teu olhar no meu, tuas mãos entre as minhas...
sorrisos de calmaria.
E é tanta imaginação que, em determinados momentos da
noite curta, pareço estar contigo, te ouvindo na sala ou no quarto, enquanto
procuro acomodar minha paixão entre tantas outras sensações que percorrem o meu
corpo e se concentram nas extremidades.
Mentalmente, percorro ruas da cidade, paro na esquina,
acendo um cigarro e olho para o alto: no espaço em que me encontro, de
construção poética do meu sentir, percebo que o tempo passa e que as palavras,
além de manterem vivo meu sentir, deflagram atos internos de quereres – ir em
tua direção, ser o que posso para ti, quando der, onde pudermos; te querer.
Talvez, nesses anos todos, tenhamos “esvaziado” o amor,
quem sabe borramos a linha do horizonte.
As calçadas seguem sem mim, a cidade vive, mesmo sem
minha presença.
Assim, eu e tu.
Dia
5 ou nenhum dia
Não chove há alguns dias e a cidade parece outra.
Ou a vida que aparenta?
O processo é cada vez mais cansativo – as noites, breves,
alguns dias leves, alguns, não.
Como não tenho ampla escolha, fico longe da multidão das
ruas, onde também já me senti em casa.
A verdade, não só a apropriada à preservação da minha
humanidade, está longe de ser revelada – sei que as palavras fingem obedecer ao
comando da minha mente, aos impulsos da minha paixão; muitas vezes desrespeitam
as construções lógicas e linguísticas e forçam a barra até mesmo da minha
compreensão.
De onde elas vêm?
Para onde vão os faróis dos carros que circulam nessa
madrugada fria, solitários, apontando para a frente, ansiosos?
Por que, quando caminho pelo apartamento, só ouço as
canções que não escolhi e quem me olha são figuras penduradas nas paredes, são
fotografias em livros desalojados?
Por que agora essas perguntas?
Logo nessa hora em que o mundo parece não ter mais
sentido, que a perdição dos desejos parece não fazer sentido; agora que a
modernidade transformou os significados da vida e redesenhou seus encantos?
E este “agora” – passado presente futuro – não é o mesmo
de quando comecei o texto embora não faça tanta diferença assim na linha do
tempo.
Enfim, mais um dia sobre a Terra.
Ou menos um.
Tudo é perspectiva, diante da tela ou da janela.
* Ilustração: Corrado Roi, em Dylan Dog (detalhe)
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