DORA FERREIRA DA SILVA foi poeta e tradutora. Nascida em 1º de julho de 1918, em Conchas, no interior paulista, ganhou o primeiro Prêmio Jabuti com Andanças, em 1970, uma coletânea de poemas produzidos desde 1948. O segundo Jabuti viria por Poemas da Estrangeira, de 1996. Ao todo, foram 15 livros de poesia, entre eles Poesia Reunida, de 1999, que reuniu oito livros e com o qual foi agraciada pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Machado de Assis.

Com o marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), criou a revista Diálogo (16 números, interrompidos com a morte de Vicente), e, sozinha, a revista Cavalo Azul (1964), doze números dedicados à poesia. Em 2003 fundou o Centro de Estudos Cavalo Azul.

Como tradutora, verteu para o português obras dos poetas Rainer Maria Rilke e Friedrich Hölderlin, do psicólogo suíço Carl Gustav Jung e de São João da Cruz.

Em 2005, apresentou ao público o livro Hídrias, que conquistou o terceiro Prêmio Jabuti. Ao morrer, em 6 de abril de 2006, o acervo da autora ficou aos cuidados do Instituto Moreira Salles, que publicou O Leque (2007), Appassionata (2008) e Transpoemas (2009).


* * *

 

Nascimento do poema

 

É preciso que venha de longe

do vento mais antigo

ou da morte

é preciso que venha impreciso

inesperado como a rosa 

u como o riso

o poema inecessário.

 

É preciso que ferido de amor

entre pombos

ou nas mansas colinas

que o ódio afaga

ele venha

sob o látego da insônia

morto e preservado.

 

E então desperta

para o rito da forma

lúcida

tranquila:

senhor do duplo reino

coroado

 

de sóis e luas.

 

* * *

 

Ritornello

 

Sempre sangrarão as cicatrizes?

                         O sono - irmão caçula da morte

parece um corte vibrado a esmo.

Mendicância-errância se abraçam silenciosamente.

 

O mito que retorna

encontra-me quase insensível

                         à dor do recomeço.

Tropeço no antigo móvel

e não o reconheço. Foi o destino

que me levou a uma outra casa?

A poltrona insegura desvia a torrente do tempo

quando alguém sentado lia

farrapos da própria alma em autores prediletos.

 

Tudo o que foi passado

custa a morrer nos meus guardados.

 

* * *

 

Órfica

 

Não me destruas, Poema,

enquanto ergo

a estrutura do teu corpo

e as lápides do mundo morto.

 

Não me lapidem, pedras,

se entro na tumba do passado

ou na palavra-larva.

 

Não caias sobre mim, que te ergo

ferindo cordas duras,

pedindo o não-pedido

do que se foi. E tento conformar-te

à forma do buscado.

 

Não me tentes, Palavra,

além do serás

num horizonte de Vésperas.


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