A desconcertante condição humana
Ou: O que fazer com os domingos?
DESCONCERTO
1
Não foi bem de uma hora para outra, como às vezes pode
parecer.
Mas, digamos que, de repente, nos vimos encurralados por
uma contingenciação da violência e da ignorância – e nossas vidas nunca mais foram
as mesmas.
E sob certa perspectiva, faz pouco tempo...
E esse tempo,
como de resto qualquer outro, nunca mais será recuperado.
Enquanto isso, há quem tome sol no litoral,
confraternizando com os amigos nos quiosques instalados à beira-mar e nos
calçadões, e faz questão de postar fotos.
Há quem acirre os ânimos, defendendo o indefensável – e seguimos,
sob permanente estado de guerra.
Como se diz por aí, a paz dá trabalho.
DESCONCERTO
2
Tudo gira em torno dos “efeitos da pandemia”, até a normalidade;
mas para além de estatísticas e discursos aparentemente desconectados da
realidade, percebemos também que a fragilidade humana não é uma simples questão
de seleção natural.
Se assim fosse, teríamos reais oportunidades de escolha –
no país em que vivo, o número de desempregados beira os 80 milhões, os jovens têm
em seu futuro um cenário construído por uma desigualdade acentuada, marcado por
mínimas perspectivas profissionais e de renda; tudo isso diante da
possibilidade de uma sociabilidade cada vez mais vigiada.
Pra embaralhar um pouco mais, temos pouco acesso a informações
e a condições que ajudem a entender os problemas, já que os boicotes oficiais contra
a educação são sistemáticos e os meios de comunicação de massa parecem ter perdido
o foco – e o que parece confusão, revela-se estratégia.
DESCONCERTO
3
Antes a vida permanecesse bonita e mágica.
Que os tantos mistérios que tocam nossas almas se
constituíssem em versos apaixonados e em utopias de um mundo melhor, do
romantismo hiponga às práticas meditativas de todos os Orientes.
Mas, em dado momento, todos os elos parecem se romper,
todas as boas intenções a se corromper.
E sobe o número de sofredores, de angustiados, de
perseguidos, de desalentados – este, um novo índice econômico, que é somado às
estatísticas de um mundo em desamparo.
E, mesmo desamparados, é um domingo para celebrar a Natureza
e os Animais, São Francisco de Assis e o Cão, o Barman e o Poeta.
É um domingo para celebrar a vida que segue, mas que,
como todo domingo, gera tédio e, atualmente, insegurança, já que o relaxamento
é inevitável; enquanto isso, vige o estado de emergência que restringe cada vez
mais nossas liberdades.
DESCONCERTO
4
Eis que Dylan Thomas se atravessa, reaviva lembranças e acentua
distâncias:
“Eu era um solitário andarilho noturno e um viciado em
esquinas. Apreciava andar pela cidade úmida depois da meia-noite, quando as
ruas estão desertas e as luzes apagadas e vazias ao luar, gigantescamente
triste na rua molhada [...] E jamais me senti tanto uma parte intrínseca do
remoto e onipresente mundo, ou mais cheio de amor, arrogância, piedade e
humildade, não somente por mim mas pela terra viva na qual eu sofria e pelos
inexoráveis sistemas no espaço exterior [...] através do aço, do vidro e do
veludo” (em Retrato do artista quando
jovem cão, p. 77-78).
DESCONCERTO
5
Entre lembranças e distâncias, não há como não perceber a
cegueira fundamental do homem.
Já foi dito tanto e de tantas formas pela literatura, de Simbad, o marujo a José Saramago; em
Ferreira Gullar e em Olga Savary; por tantos outros.
É certo que existe, sob tanto desalento e desconforto,
linhas de resistências – como não poderia deixar de ser.
Coletivos se organizam em todo o país, videoativistas fazem
uso das ferramentas que perversamente são utilizadas pelos monopólios (ô
palavrinha incômoda!) para narcotizar o indivíduo.
A preservação da memória de tantos personagens que defendem
uma sociedade mais equitativa procura fissuras para dar um novo sentido à
existência, enquanto neste domingo os incêndios se aproximam da patrimonial
Ouro Preto, em Minas Gerais.
Queimam as florestas e as cidades, querem pôr fogo nas
manifestações culturais, queimar as pontes da igualdade e os laços
humanitários;
Já não “uso óculos escuros para minhas lágrimas esconder”,
embora curta ouvir Caetano na voz de Mautner enquanto escrevo depois de reler
Thomas.
Ainda que vaga, sei que a esperança vaga por aí – e posso
recorrer pretensiosamente à juventude, essa “instituição” quase abstrata, fragmentada
por questões sociais, étnicas, econômicas e outros parâmetros sociológicos, essa
juventude que não tem idade cronológica, que, à mercê do autoritarismo, do
racismo, do etnocídio, da hipocrisia, da violência, se insurge.
Mas são tantos mistérios e desconcertos sob este céu encoberto
pelas nuvens, e o domingo escorre cinza e lentamente, além da metáfora, pela
cidade.
Foto: Renato Zaro
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