O
que fica nas gavetas
Escrever sobre o tempo é pega-ratão
Gaveta
1
Não costumo iniciar um texto com a palavra “não”, mas sinto
que devo informar que não vou escrever sobre problemas que preocupam nesses
últimos meses (anos?).
Não vou criticar os governos, não vou reclamar que o
horário político, uma vez mais, desafia a inteligência – é um escárnio em rede
nacional, e o voto continua a ser obrigatório numa realidade em que o
discernimento é, no mínimo, duvidoso.
Não vou lamentar que a natureza continua a ter sua
importância menosprezada, nem vou comentar que espaços urbanos ainda são
concebidos – ao caminhar, observo uma nova farmácia próxima de onde eu moro – com
90% de concreto e apenas “recursos paisagísticos” como floreiras, resultado de
um urbanismo autoritário e desumanizado.
Não vou escrever sobre a desorientação que toma conta das
pessoas frente ao grave problema de saúde que vivemos, que já deixou de ser
apenas uma pandemia (fala-se agora em sindemia, pois envolve problemas
estruturais, cuja solução não faz parte dos planos governamentais), nem sobre
as falcatruas que desviam verbas originalmente reservadas para as necessidades básicas
das pessoas (educação, entre elas) para a manutenção de uma oligarquia
ultrapassada e assassina.
Não, não vou escrever sobre a tristeza e a dor de pensar
que um dia o Brasil já foi considerado um país do futuro, e a cada dia, quando
a mídia cumpre sua função, ficamos sabendo que a miséria aumentou, que a
subnutrição voltou a ameaçar as crianças, que as famílias já não sabem mais o
que fazer para garantir seu sustento, que a fragilidade dos diferentes/excluídos
é implacavelmente ameaçada pelas crenças e opiniões; que está sendo ampliada a
distância entre o conhecimento e o acesso a ele, com o descaso e as tentativas
de apagamento da História.
Não, não vou escrever, de forma alguma, sobre o que me
deixa triste, não vou revirar as gavetas da memória em busca da paixão que me
consome pelas cidades imaginárias que percorro sempre à tua procura.
Gaveta
2
Mais do que tudo isso, quero dizer que os dias têm sido
pródigos em surpresas e encantamentos, não só pela temperatura agradável (as
noites ainda parecem de outono), mas também pelas narrativas com que são
construídas a existência comum.
Sei que tudo o que foi escrito no primeiro parágrafo não
desaparecerá só porque eu não quero escrever sobre; mas uma das coisas mais
significativas da escrita é o poder que ela concede a quem escreve: novos
mundos podem ser criados ao invés de apenas ficarmos chorando sobre o fim do
mundo que conhecemos e que diariamente nos confronta.
Há mais poesia em nossas rotinas do que
supõem os profetas capitalistas e religiosos capciosos que procuram
desestabilizar o cotidiano.
Há tanta poesia que, apesar de tudo,
amanhã será outro dia e Chico Buarque não deixará de ser ouvido e interpretado
e significado; apesar de “vocês” ainda existe a possibilidade de um outro
mundo, que vem sendo arquitetado por sonhadores, por trabalhadores, por
mulheres, homens e transgêneros; por miseráveis economicamente, mas afortunados
espiritualmente, por aqueles que se apaixonam, por aqueles que plantam árvores
e aqueles que, nos parques, plantam bananeiras, por aqueles que suam em suas
bicicletas indo para o trabalho ou ultrapassando os próprios limites; um novo
mundo vem sendo gestado também pelos artistas e pelos poetas, que não deixam de
publicar seus livros e ocupam nuvens com seus versos.
Gaveta
3
Também não irei comentar sobre as dificuldades que as
pessoas tiveram para se adaptar a um novo ritmo de vida.
Antes, pensar que, ainda que de forma abrupta, muitos descobriram
possibilidades que até então eram vagas sinalizações de alternativas para o modus vivendi socialmente planejado.
Claro que mudanças se delineiam desde que as cidades eram
apenas edificações separadas por ruas e calçadas, que atraíam milhares de
pessoas em busca da modernidade e de facilidades que os investidores ofereciam
como cartões de embarque para uma viagem a um reino encantado.
O tempo, o crescimento demográfico e suas piores consequências,
a disparidade social e outros fatores assustadores, contribuíram para jogar uma
pá de cal em cima dos sonhos de uma vida de conforto e de prazeres que a
urbanização prometia.
Hoje, calçadas são ocupadas pela informalidade que oculta
necessidades, canteiros mal projetados onde despontam árvores raquíticas – canteiros
que logo viram lixeiras e cemitérios de flores –, e multidões atarefadas e ensimesmadas;
enormes edifícios, com designs que
muitas vezes nem as cores os diferencia, restam vazios, amaldiçoados pela
especulação imobiliária; não só à noite, as marquises servem de abrigo para
milhares de seres humanos e seus animais de estimação e seus poucos pertences,
sob a propaganda enganadora do programa habitacional Casa Verde e Amarela.
A arquitetura contemporânea se ergue, via de regra, sobre
escombros e sobre a memória de tempos que já foram considerados “os melhores”;
as ruas, que tiveram por objetivo direcionar a mobilidade, transformaram-se em
labirintos quentes no verão, escorregadias em época de chuva e desérticas
paisagens nas noites geladas.
Gaveta
4
Mas não era sobre isso que eu queria escrever; mas a
palavra é teimosa, como regida pelo signo de Escorpião; tem vida própria e faz
com que os dedos procurem as teclas à mercê da vontade de quem escreve.
Felizmente, a teimosia não faz com que ela seja sempre triste
ou reproduza o desespero – há sonhos que se materializam na tela e no papel.
Há esperança e há revoluções; há insatisfação, sim, mas
também há a alegria de compartilhar um período cheio de significados, individuais
e coletivos, latentes e/ou explícitos; na escrita é possível criar outra
cidade, é viável acreditar que o mundo pode ser melhor e que as pessoas
alcancem um grau de excelência humana, divina ou metafórica, que deixe para
trás, nos álbuns de fotografia ou nas páginas dos veículos de comunicação, os
registros de uma sociedade hipócrita, interesseira e violenta.
A escrita faz com que aqueles que não têm voz social e
política consigam se ver representados; a escrita faz com que os relatos de
quem foi enquadrado como subespécie receba, merecidamente, a dignidade de volta
– mesmo que a censura, a espiral do silêncio, a indiferença e a truculência dos
verdadeiros ignorantes ameacem com mais silêncio, com mais truculência, com
maior indiferença.
Muitas lágrimas ainda precisarão ser enxugadas e muitas
vidas ainda serão lamentadas; mas um novo texto está para ser escrito e neste
novo relato, o personagem terá a mais simples de todas as éticas, este personagem
estará mais a fim de contemplar um céu anil do que empunhar um fuzil.
Gaveta
5
Uma gaveta tem um quê de mistério e nostalgia poética.
E metáforas.
Numa delas reencontro um velho envelope pardo; velho
mesmo, rasgado e amarrotado; e, dentro dele, outros envelopes e, dentro dos
envelopes, uma série de pedaços de papel pautado e guardanapos de botecos e de
lancherias, talvez até de restaurantes.
Escritas antigas, algumas completamente ilegíveis, mas
ainda assim preservadas.
Todas ficaram para serem “passadas a limpo” no dia
seguinte, no máximo; só que o tempo se descuidou e os versos se esvaíram – na
ocasião, surgiram como criação, agora que os tenho em minhas mãos, não passam
de pedaços de papéis manchados que representam nada mais do que uma intenção.
Uma intenção poética, que seja, nada mais, criada no meio
do gueto urbano ainda não protegido por muros e alarmes e exércitos privados;
alguns, por certo, em balcões envoltos pela fumaça (quando isso era mais do que
cena de filme) ou sob os arremedos de árvores que ainda são encontradas pela cidade
– dizem que em número suficiente para estar de acordo com a densidade
populacional.
Numa outra gaveta, por um tempo restarão vestígios, tais
como os poemas que se desfizeram com o tempo, que, assim como a poesia, transforma
e se transforma; a vida é e a poesia está, como a árvore, ao sol e à lua; apesar
de todas as negações do primeiro bloco, “cada manhã que nasce / me nasce / uma
rosa na face”, e, mesmo sendo um “pequeno poeta de província”, com uma “dor
elegante” (talvez por se manifestar apenas como “demônios loucos” nas
madrugadas), virá o dia “quando tudo que eu diga / seja poesia”.
(Ao finalizar, perceba, me aproprio de versos do poeta curitibano
Paulo Leminski (1944-1989), aquele que não discutia com o destino.)
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