Autora de um único livro de poesia, ASSIONARA SOUZA nasceu em Caicó (RN), no dia 14 de outubro de 1969.

Formada em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná (UFP), com doutorado na mesma instituição, foi pesquisadora da obra de Osman Lins (1924-1978), professora universitária e oficineira de leitura e produção literária da Fundação Curitiba.

Além dos poemas reunidos em Alquimista na Chuva, de 2017, escreveu Na rua: a caminho do circo (2014, contemplado com a Bolsa Petrobras), Os hábitos e os monges (2011), Amanhã. Com sorvete (2010) – Mañana iCon helado!, no México (2014) – e Cecília não é um cachimbo (2005) – também nome do blog que a escritora mantinha –, todos de contos. Com a peça Das mulheres de antes (2016), para a Inominável Companhia de Teatro, estreou na dramaturgia.

Participou do coletivo Escritoras Suicidas (na antologia Dedos de moça, 2009) e colaborou com a revista Germinaliteratura. Reuniu autores paranaenses em torno do projeto Translações: Literatura em Trânsito e teve seu trabalho incluído em 48 contos paranaenses (2014), organizado por Luiz Ruffato.

Faleceu em 21 de maio de 2018, em Curitiba, onde morava desde os 11 anos, vitimada por um câncer de intestino.


Ouça poemas de Assionara Souza em https://www.facebook.com/watch/?v=2382238295376800 e em https://www.mixcloud.com/Poemoda/assionara-souza/

* * *



As ruas, seus espasmos de luz em meio às sombras

Tatuagens sutis de conversas e risos

Duas realidades dispersas

Não sei se foi pra ti que confessei

Minha compaixão por Caim

Sua humanidade diante do fracasso em agradar Deus

E o peso das últimas consequências

Vejo você negociar com o destino

"Esperava mais. Não consigo sentir o suficiente.

Faça-me sentir o suficiente até adormecer e sonhar"

Estou dentro do barco e ele desliza em meio a águas confusas

Caim amou sem precedentes

Sua cegueira não lhe dava acesso à lucidez

Somente olhos para Deus

Todo ouvidos e pés correndo para junto de seu amado

O que não conseguimos tocar está prenhe de símbolo

A poesia oscilando entre sono e vigília

Por nada saber, revisar o vivido feito cego tateando o ar

Louco por converter perfume em substância

Coisa tangível ao tato e paladar

A árvore frondosa de Baudelaire

Com suas raízes e galhos violentos furando o chão e rasgando o ar

Enquanto nos vê passar


* * *


recado


Preciso que você veja

Entre as coisas esquecidas

A louça suja na pia

O mofo pousando cruel na doçura das frutas

Observe, por favor, se não deixei

Naquele canto do quarto

Por onde os insetos entram

Na ferrugem do ferrolho da janela da cozinha

Essa que sempre te acorda

Quando eu insisto em abrir

Assim que o sol se ajeita melhor no céu

Procure na caixa de areia dos gatos

Entre os pelos dos bichanos onde correm as pulgas que não matei

No desgaste da bicicleta largada no jardim

Talvez no banco de trás do carro que estraga estraga e você conserta

Olhe também embaixo das espreguiçadeiras

Na água amarga do jarro de flores que você esquece de trocar

Na ansiedade que antecede a raiva, quando a moça do telemarketing

Não atende, não atende, não atende

Sua solicitação

Entre os livros da estante, tantos não lidos

Em eterno estado de espera e culpa burguesa

Nas mil declarações de amor que lhe chegam in box

Vigie se por ali, no cheiro do café

No pão cortado, os farelos sobre a mesa

No silêncio entre as notas de sua música preferida

Dá uma olhada se não larguei por esses cantos

Os sete pedaços do meu coração


* * *


narcisyou


Então é suficiente olhar o poema na página e pensar:

Que poema estrondoso

Que poema estúpido de louco

De onde vem essa coisa toda que se chama poema?

Ah, talvez daquela rua

Um garoto atravessando

Ele tem um lenço azul no bolso

E fica parecendo o rabo de um gato

Os cabelos esvoaçam

Ele fez isso de propósito

Não! Espera, não é daí que vem

Talvez seja mesmo desse pouco espaço para o coração

De repente ele começa a explodir demais

E ninguém consegue dormir direito

Ou por isso mesmo, dorme-se demais

A cidade sonolenta

Os três correndo feito loucos

E quando ela cansa, põe as mãos nos joelhos e sorri

Jules e Jim também é o seu filme preferido?

É o meu!

Que coincidência

Que coicidência eu ter olhado por um tempo longo

E ter pensado:

Estranho, quanto mais eu olho, mais gosto

Não era só um poema numa página?

Aliás, naquela manhã já faz tempo

Seu rosto de criança refletido no lago

Todos prontos para partir e você ali

Nesse exato momento: o poema


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