Sobre viver com poesia num mundo em perigo


A Poesia talvez torne dezembro um mês encantado e o ano termine com um pouco de leveza


Estratégia 1


Para não ir tão longe, tudo começa quando a rotina nos põe em movimento.

Acordar vem antes, depois de uma noite sem sono, apenas mergulhos superficiais no território escuro que nem sempre proporciona sonhos – também pesadelos ficam ausentes às vezes.

É primavera e o canto dos pardais insiste pelas persianas fechadas, misturados ao barulho do trânsito matinal, em que já sobressai o ronco do motor de um caminhão de descarga.

Sobre a cidade, um sol opaco por trás da camada de nuvens e da fumaça que se espalha de outros pontos do país, que arde em chamas e sinaliza um futuro mais árido e de escassez; o ainda no campo do provável, porém não impossível.

O calendário de outubro já tem, para as retrospectivas, o segundo maior índice histórico de devastação pelo fogo daquela que era uma das maiores áreas naturais do mundo; a chuva que caiu nos últimos dias na região central do Brasil é insuficiente, desproporcional ao escárnio e à indiferença da maioria da população.

Vivemos num mundo perigoso, com territórios físicos e imaginários em perigo; e é preciso sobreviver, “é preciso estar atento e forte”.


Estratégia 2


A falta de um programa abrangente de desenvolvimento para as regiões naturais no Brasil favorece que as invasões, as apropriações e a destruição sigam impunes, acompanhados de um entreguismo sem paralelo – quando há alguma ação é no sentido de restringir o acesso do público em nome do desenvolvimento e de investimentos que irão atender interesses particulares.

O sentimento é de incredulidade: em que curva do caminho a razão e o bom senso caíram do caminhão de mudanças?

Cerca de 15 milhões de árvores são derrubadas anualmente pela ação humana e o crescimento do agronegócio é uma ameaça ao ambiente.

Enquanto isso, no Japão, a técnica florestal chamada daisugi, semelhante ao bonsai, proporciona madeira sustentável sem que seja preciso derrubar árvores, mas apenas podá-las (https://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/sistema-de-poda-japones-permite-produzir-madeira-sem-derrubar-arvores/).

Coisa de outro mundo, enquanto procuramos sobreviver num mundo em que as pequenas certezas não são mais as mesmas; nem a natureza, nem a rotina, hoje provisória.


Estratégia 3


A sociedade está em guerra e o cidadão comum é o alvo.

A força das opiniões e crenças que cabem em um sistema dominante, acaba por inibir ou sufocar ou violentar as diferenças; resulta no aumento do número de excluídos e dos indefesos.

Há um risco de extinção maior do que se imagina, enquanto cumprimos rotinas e procuramos meios de garantir a sobrevivência no cotidiano de cidades alteradas pelas circunstâncias geradas pelas ações humanas.

Um processo natural se desenrola em paralelo à ação da arrogante presença do homem, embora acelerada por este: cientistas alertam que o planeta se encaminha para a sua sexta extinção em massa.

Não será preciso asteroide, provavelmente não choverão bombas nucleares, embora as guerras, pequenas ou grandes, não sejam interrompidas enquanto a batalha econômica as financiarem; caberá à Natureza depurar o que não presta.

Talvez de forma menos escandalosa do que os focos de incêndios nas matas, talvez mais impactantes que as infrações populacionais motivadas pela ganância e pela falta de opções nos grandes aglomerados urbanos.


Estratégia 4


Mas – tem outros “mas” no texto e no horizonte das possibilidades – o ser humano é incrível e também sinônimo de beleza e esperança.

Certo que há momentos em que a gente fica um pouco triste, que a vida parece ter perdido a graça; que caminhar pelas ruas resume-se às necessidades e não ao prazer do encontro com o Belo e com a primavera que refloresce mas que, no momento, deve ser sentida à distância.

Certo que há cansaço, que se observa o retrocesso mais do que os avanços, em todas as esferas e em todos os sentidos.

Porém, os ipês estão floridos, a temperatura começa a veranear, a poesia paira nos plátanos dos parques, o artista recria meios para continuar; o artista recria-se.

A alegria é um direito de todos, embora vivamos um tempo em que várias estratégias foram criadas para roubá-la de nós – como ela se manifesta depende da força de cada um.

A verdade é que a alegria não pode ser reprimida por opiniões teleguiadas, por demonstrações de ignorância social e política, pela arbitrariedade, como se observa cotidianamente.

Mesmo com todo o cansaço e a sucessão de episódios degradantes da condição humana no cenário nacional, a vida segue.

E, nos dias de hoje, é preciso leveza e resistência para prosseguir.

É preciso, também, leitura e esclarecimentos para não regredir; para não sucumbir.

Entre outras razões e benefícios.


Estratégia 5


Por falar em leitura e conhecimento, termina hoje, em Bento Gonçalves, a edição número 35 da Feira do Livro, que tem a escritora Leticia Wierzchowski como patrona e como tema “Uma feira feita de histórias”; a Biblioteca Pública Castro Alves, que este ano completa 80 anos de serviços à comunidade, recebeu as homenagens.

Na quinta-feira, dia 23, é a vez de Garibaldi dar início ao seu encontro literário, que terá atrações ao vivo, inclusive no formato drive-in (já confirmada a presença de Tita Sachet e Rafa Gubert, acompanhando/acompanhados pela Orquestra Municipal), mas com grande parte da programação sendo acessada no formato virtual – e um jornalista, Hiltor Mombach, como patrono.

Mais adiante, a partir de 27 de novembro, ocorre a Feira do Livro de Caxias do Sul, em sua 36ª edição; em função das circunstâncias, a feira deste ano ocorre em um novo período, e, a exemplo de Bento e Garibaldi, terá uma série de atividades desenvolvidas e mediadas pela internet, atividades que permanecerão na “nuvem” para aqueles que não puderem estar presentes na praça Dante Alighieri.

Mas a comunidade não deixará de ter a sensação de caminhar entre “nuvens”: até o dia 13 de dezembro a praça voltará a ser dos livros e da leitura; o público terá acesso aos objetos de consumo e prazer oferecidos pelos livreiros que, mesmo com uma economia desalentadora, são parceiros da iniciativa municipal.

Mais: até a metade de dezembro, os leitores poderão trocar ideias e experiências em atividades presenciais voltadas à leitura e aos livros, com todo o cuidado e com a necessária segurança protocolar.

Por isso, num calendário riscado por tantas más notícias, saber que profissionais, diletantes e apaixonados pela literatura reservam tempo e dedicam-se a proporcionar esses espaços, provoca um contentamento ímpar; perceber que há resistência, que a insistência em criar oportunidades para que o mundo venha a ser outro, para que as pessoas possam, em torno da força da palavra, se organizar para construir um futuro (que parece não mais existir na distopia do presente), é, no mínimo, vislumbrar uma chance de reaprender a viver no mundo perigoso em que nos encontramos.

Uma vez mais, a Poesia – no que envolve a primavera, leitor, leitura e feiras dos livros – se corporifica como um bom motivo para tornar dezembro um mês de magia, prenunciando um verão de muita alegria e com um pouco mais de leveza.


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