Sob
a imensidão, urgências e carências
Mas é primavera e a manhã está azulada
HORA
1
É primavera e a manhã voltou a ser azulada; a cidade está
menos atarefada, como costumam ser as cidades aos domingos (na eterna metáfora
dos domingos), e até dezembro as noites continuarão mais longas do que os dias.
Mesmo sob a grandeza celeste, as urgências, as emergências
e as carências não diminuem de tamanho; os dias, mais do que nunca, seguem
sendo abstrações temporais, e as carências, as urgências e as emergências, o
que nos move.
E nessa alucinação pra lá de careta, preciso encontrar um
mantra que apazigue, me surpreender com a palavra certa que desacerte e
desacomode, para que eu não seja apenas mais uma marionete no espetáculo de
sombras que hipnotiza milhões mundo afora; que tenha condições de manter meu
pensamento além da trilha única que os condutores oferecem.
Ao som de Metrópole,
com César Camargo Mariano & Cia., inauguro a manhã deste domingo que
encerra uma semana que, assim como outras, pareceu duplicar/replicar os dias.
HORA
2
O olhar para o passado pode ser apenas um desvio do
aqui-agora, afinal, a catástrofe continua, a catástrofe se avoluma.
Nossos medos nos mantêm reféns.
E, de onde vêm esses medos?
E do que propriamente somos reféns?
O que fazer com tudo isso?
“A informação é o sonho paradoxal da coletividade – o
estado hipnótico em que ela se regeneraria, ela e sua identidade coletiva, como
se diz da função do sonho na vida individual. Ou então a informação está no
lugar do sono profundo, cuja vida real seria o estado de vigília paradoxal”
(Jean Baudrillard, Cool Memories IV,
2002).
HORA
3
É primavera no Hemisfério Sul e outono no Hemisfério
Norte.
E saber disso não muda a rotina dos dias, porque, afinal
de contas, não temos a garantia de que o sol que nos aquece hoje será o mesmo
durante a semana.
Como não muda a rotina saber que o Brasil ultrapassou a funérea
marca dos 150 mil mortos pela infecção por covid-19.
Quase soterrado pela avalanche midiática – parte da
catástrofe –, descubro um novo indicador para esse novo tempo: o R-efetivo; ele
serve para medir a taxa de transmissão do coronavírus e para projetar as
necessidades hospitalares e o espaço nos cemitérios; se ele estiver acima de 1,
significa que o vírus continua circulando.
Em busca de mais informação, também leio que
pesquisadores “sugerem” que houve desaceleração de novos casos no último mês.
A pesquisa indica que a proporção de pessoas com
anticorpos é de 1,38% (1,06% a 1,76%, pela margem de erro), mas também estima
que exista 1,1 caso não-registrado para cada caso real.
Entristeço por saber que não sei o que fazer com tanta
informação.
O sol brilha e também sugere, mas, nesse domingo, apesar
da vontade de reencontrar com a cidade, meu olhar se restringe em seguir a vida
pelas janelas.
HORA 4
E há sempre quem queira polemizar por polemizar, talvez
para manter-se ocupado e/ou lidar com a angústia.
Ou por não ter nada melhor para fazer.
Nesses dias pandêmicos, o escritor estar sujeito às leis
da internet talvez não seja o pior dos cenários, como afirmam por aí; a
intenção da escrita continua a ter mais significado que o meio por onde ela
circula.
Deixar os ressentimentos fora da análise (e da vida, essa
possibilidade de poesia e prosa) pode contribuir para que a harmonia ainda
encontre espaço nos dias futuros, dias em que deixaremos de viver apenas sob o nowcasting – a “projeção do presente”,
como dizem os especialistas da área da saúde.
Porém, o que se percebe é um comportamento contraditório:
alguns escritores agem contra eles mesmos ao desestimular a possibilidade de
novos leitores, ao negar a eles a liberdade e o prazer da escolha; ao mirar em
movimento, alguns atiram a esmo, cheios de razão, tão modernos!
HORA
5
Há o cansaço, sim, e pesadelos em repouso também; mas a
cidade continua em movimento, sim, com sirenes de ambulâncias e seus cheiros característicos,
com namorados passeando e almoços em família, com seus compromissos e suas
irresponsabilidades.
A catástrofe também circula pelas ruas, como sempre
circulou, e o medo não deixou de ser irracional; a trilha sonora mudou e o
poeta, em algum lugar, segue alertando: “la poesía no puede arrebatarle bebés a
la muerte” (Frank Báez).
Mas... é primavera e a manhã voltou a ser azulada.
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