Esta
rua não é mais a mesma
Divido o espaço com milhares de vivos e mortos
Percurso
1
O sinal verdeja, o sinal vermelheja – metáfora da “vida que
segue”, enquanto o olhar mareja; na faixa de segurança, as pessoas caminham em direção
aos seus objetivos, logo ali, no outro lado do mundo, talvez, absortas,
provavelmente.
Existe uma lógica por trás de tudo, inclusive para a
loucura que nos guia na incerteza desta “vida que segue” e na falta de
eficiência.
Quando o caminhar perde a magia, é porque racionalizo, é
que percebo que meus passos estão submetidos a um imperativo construído pelos
que fundaram as cidades e pelos urbanistas que fizeram os ajustes ao longo dos
anos.
A cidade em que caminho foi construída “dentro de um
modelo urbano com as ruas formando um traçado ortogonal, basicamente sob
orientação dos pontos cardeais [...] configurou-se como uma planta em grelha,
cujos quarteirões tinham formato retangular”, lembra Filippini (2019, p. 15)1.
Uma cidade é a síntese da região onde está inserida, que
pode ser um país.
Uma cidade apresenta fissuras e desigualdades, mas é um
espaço para viver e para ver, o que às vezes seduz e, em outras, provoca
repúdio.
Ela tem um design
que se redesenha: pessoas diferentes em tempos diferentes promovem alterações,
seja pelo olhar, seja pelas interferências, pelo modo de administrá-la, pela
forma como ela é poetizada.
A ordem é importante, mas os pequenos fragmentos de caos,
provocados pela desigualdade social, política e econômica, criam imagens e
circunstâncias que geram harmonias atonais, em que as confidências trocadas nos
ônibus e nas esquinas contribuem para criar novas aproximações.
Percurso
2
O planejamento urbano existe para ordenar o crescimento
das cidades e, com o passar do tempo, incorporou até as regiões rurais; nele, há
uma busca constante da minimização dos problemas que decorrem dos processos de
urbanização, como a poluição, a convivência e os engarrafamentos.
O automóvel deixou de ser uma escolha e tornou-se uma
necessidade, em amplo espectro; transformou a ideia do coletivo, pois
representa o desejo de liberdade do ir e vir em qualquer circunstância, desejo
construído pela relação utópica entre capital e trabalho, mas, em diferentes
proporções, incompatível com o bem-estar da população.
Os condomínios e os shopping
centers criaram novas comunidades – acentuaram práticas individuais e proporcionaram
novas identidades para os habitantes da cidade: a transformação das áreas
centrais urbanas, pelo menos desde a década de 1960, quando era considerada
“nobre”; a contribuição do capital imobiliário para a segregação; a prática da
gentrificação, que vende sonhos com a “recuperação de áreas degradadas” e
dificulta o direito ao convívio daquele habitante que não participa do processo
de acumulação de capital, são algumas questões que chamam a atenção.
Porém, há mais coisas pelas ruas que pessoas, automóveis,
buracos e cachorros que deambulam, indiferentes aos assobios.
Percurso
3
Dar a vida em palavras, viver todas as palavras em nossas
diferentes existências numa linha de tempo é tão natural quanto respirar.
Essa existência materializada pela palavra nem sempre
mantém a identificação com a ideia original – estabelecer padrões gera
infelicidade e insatisfação; a tristeza pode ser vista num olhar melancólico;
pode resultar em boicotes ou, na extremidade, em revolta armada.
Leio que a esperança deixou de ser uma estratégia
possível, e entendo que a rotina da morte tenha esvaziado o significado desta
passagem da vida humana, talvez por resignação cristã, muito por impotência
diante da catástrofe.
De 12 de março até 8 de agosto, um minuto de silêncio por
cada uma das mais de 100 mil vítimas do coronavírus equivaleria a 70 emudecidos
dias; de cada 7 mortos pelo mundo, um era brasileiro, na maior parte das vezes só
visível para os familiares, com suas histórias e seus amores; já são 3 milhões
de diagnósticos confirmados em todo o país, que não tem um plano para amenizar
o problema, sequer tem liderança para resolvê-lo.
Uma nação em luto, na luta para lidar com o presente, já
que o futuro é assustador.
Nesse contexto, a agoridade deixa de ser contemporânea, torna-se
pós-utópica.
E, por isso, também tem poesia numa hora dessas, tem Haroldo
de Campos em “dialética do agora – 2”:
ora se nos mostra o agora:
este agora.
a g o r a .
mas ele já deixou de o ser
quando nos é posto à mostra:
e vemos que o agora
está exatamente nisto:
enquanto ele é
de já não mais ser.
o agora que ora se nos
mostra
é um ter sido
e nisso está sua verdade:
ele não tem a verdade do que
está sendo.
mas é verdade isso
de ele ter sido
mas o ter-sido não fica
sendo
de fato uma essência:
ele não é
e nosso afazer era o ser.2
A dúvida que fica é a dúvida que Jean-Pierre Lebrun
enuncia: como as narrativas passaram a ser feitas no real, já que vemos o
desaparecimento da ficção, quem somos realmente? “O problema para seres não
acabados, como somos nós, é efetivamente, que isoladamente não nos consistimos
naquilo que somos”, diz o filósofo (2008, p. 126)3.
Agora, justo agora, que a cidade está distante?
Resta ainda a palavra.
Percurso
4
Não é só a idade que pesa.
É o fechamento do mercado de trabalho, é a redução de
garantias, é a diminuição de direitos de ser.
É a exploração da natureza, da mão de obra, da
consciência.
É a subocupação e a subnotificação; são as pessoas nas
esquinas a vender pomadas milagrosas.
Por estas ruas, caminhava despreocupado, como Pessoa/Caiero
passeando “nos dias de grandes acontecimentos no centro da cidade”, feito
Leminski, “que pensa que a rua é a parte principal da cidade”, como Maiakovski,
“entre os arranha-céus, onde o ouro mora, e o ferro dos trens é posto fora”, ou Ana Cristina, em alguma janela de Copacabana; feito
Conceição Evaristo, insone, visto que “a noite não adormece os olhos das
mulheres”, ou Pasolini, que sonhava com “cidades grandes como mundos”.
Quando Quintana desenhou o mapa de Porto Alegre, eu ainda
não caminhava de Lourdes a São Pelegrino; Chiarelo, que nem poeta era, conhecia
a cidade passo a passo; Luchese, “parado na esquina”, observa, enquanto Iotti “fica
sentado no parque à espera”, como a moça rosa do poema do Petry, que vende
flores “na esquina da general sampaio com rio branco”, e, poeticamente, Nil camicase,
“morra na contravenção no shopping comendo baguete”.
Caminhando dá para perguntar e se perguntar onde tudo
começou; daria para olhar o horizonte, mas a skyline da cidade, vista do centro, já não permite, e são poucos os
terraços que não estão entulhados de antenas ou de restrições de acesso.
Sobram ângulos fechados, tristeza, receios e
[de]limitações para quem está ao rés do chão.
Para quem tem que enterrar seus mortos.
Resta, então, a poesia, já que as ruas não são mais as
mesmas.
Percurso 5
Tudo está no limite: a vida, a ciência, a tecnologia, a
paciência, a economia.
Estão no limite os profissionais da saúde e a capacidade
de atendimento nos hospitais.
A cidade, forma dominante do ambiente construído, pode
deixar de existir, como mostra o cineasta Tyrrel Spencer em seu documentário4;
a cidade enquanto representação reificada, se dissolve diante de nossos olhos nos
dias de hoje, na agoridade.
Morrem as pessoas, mudam as referências simbólicas e
reais, sangram os contribuintes, fecham o comércio e a indústria.
A vida está por um fio e a vida cotidiana é obrigada a se
redesenhar mais uma vez; espera-se que a transformação da cidade moderna
encontre sustentação para um humanismo menos teórico, em que a cidade deixe de
ter a dualidade de sua representação como pressuposto para existir.
E significar uma outra cidade.
* Ilustração: Vicenzo Scarpelini, pintura “Brás, Viaduto Gasômetro”, em São Paulo: trânsitos. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2005. Coleção São Paulo, 1.
1 FILIPPINI, Roberto.
O outro lado da Júlio: histórias e
memórias de uma Avenida. Caxias do Sul: Lorigraf, 2019.
2 CAMPOS,
Haroldo. Crisantempo: no espaço curvo
nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1988. Coleção Signos, 24.
3 LEBRUN,
Jean-Pierre. O futuro do ódio. Org.:
Mario Fleig trad.: João Fernando Chapadeiro Corrêa. Porto Alegre: CMC, 2008.
4 SPENCER, Tyrrel. Cidades
Fantasmas. Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre, RS, Brasil, 2017.
M a r a v i l h o s o!
ResponderExcluirPatrono!