Onde estou


Aqui ou ali, é preciso reencantar-se

Ontem aqui

Em grande parte de nossas vidas, o cérebro vive de forma autônoma, movido por junções ou sinapses, que constroem a nossa concepção de como as coisas são.
Vivemos entre memórias verdadeiras e falsas memórias – e a cada dia, outras lembranças são acrescidas; no agora, processamos uma nova memória imunológica e, até que o “programa” esteja completo, muitos corpos serão reminiscências de tempos de alegria e despreocupação; de ignorância e menosprezo pela vida; serão números na macabra marca da passagem do tempo.
Bauman reafirma a incerteza do presente, e o cidadão comum, como eu, sente dificuldade em pensar no futuro; às vezes parece que o mundo é um grande caminhão de mudanças a se deslocar no tempo e no espaço, com alguém que cai da carroceria com o solavanco, com um vira-lata que corre atrás e acha que é brincadeira.
Se os dias parecem iguais, sorte é que a memória dos bons momentos é acessada o tempo todo; porém, nem tudo que é lembrado foi vivido e quase tudo o que foi vivido é reciclado, pois as lembranças se entrelaçam e o que parece que aconteceu, muitas vezes nunca se deu.

Hoje ali

Por vezes penso que vivi durante a década de 1920, quando ocorreram grandes transformações, a arte de vanguarda entre elas; junto com ela, uma utopia social e revolucionária, já que a arte era, até então, um privilégio das classes dominantes – os salões aristocráticos aos poucos eram palco de discussões e divagações de artistas que passavam a prestar atenção à arte popular e a produzir novidades artísticas na poesia, nas artes plásticas e na música.
Às vezes estou num salão, cercado de damas da oligarquia cafeeira, ouvindo Oswald de Andrade argumentando seu ponto de vista antropofágico enquanto Villa-Lobos, sentado ao piano, prepara-se para executar o balletto Amazonas, alternando o lugar com Guiomar Novaes; Anita desdenhando do nacionalismo de Lobato e aplaudindo Graça Aranha, e Ronald de Carvalho a declamar “Os Sapos”, de Bandeira.

Amanhã sei lá

De volta ao trabalho isolado, lido com as incertezas e as alegrias que o presente me oferece; com a tristeza de saber que em pleno século XXI ainda temos o corpo e a mente colonizados – tudo o que aconteceu parece sequer ter arranhado a superfície de nossa pretensão de ser um país do futuro.
Em 2019 foram liberados aproximadamente 500 novos agrotóxicos e só agora, neste circo pandêmico, foram aprovados mais 118 venenos – como se já não estivéssemos fragilizados física, mental e emocionalmente, os gestores desta pátria em que nasci demonstram a cada dia que não têm amor pelos brasileiros.
Neste agora, quase imediato, escritores, editores e leitores se deparam com mais um absurdo da “ciência econômica” praticada pelo governo: a contribuição tributária de 12% sobre os livros, prática que havia sido extinta na Constituição Federal de 1946, proposta em forma de emenda constitucional pelo escritor Jorge Amado – pelo que consta, na América Latina apenas o Chile cobra imposto relativo aos livros.
E o que uma coisa tem a ver com a outra é muito fácil de relacionar: ambas são ações que fragilizam a população; ambas minam a saúde das pessoas e acentua a barbárie administrativa que se alastra ao atacar a saúde física e a capacidade de discernimento de um povo já entorpecido e distante dos bens culturais – solapados por desastres com nome e sobrenome; faltava a pá de cal, que se desenha com a proposta de um orçamento para o Ministério da Defesa maior que para o da Educação.
E cada vez mais os planos para o futuro se configuram como um projeto de extermínio.

Talvez Ceilão

Francamente, Walter Franco, é mesmo só uma questão?
Manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
Tudo é uma questão de.
Manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
Tudo é uma questão de.
Manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
Tudo é uma questão de.

Tanto faz. Ou não

Sentir-se à vontade no aqui e agora.
À vontade circulando pelos campos encharcados pela chuva e pela cerveja derramada em Woodstock; pelas ruas de Londres para disputar um lugar à frente do palco dos Sex Pistols; no retorno ao vão do MASP, à Pedreira Leminski, à Lapa, ao Mercado Público no mapa de Quintana em Porto Alegre; à vontade nas ruas da Cuba neobarroca de Sarduy, sobre as pedras portuguesas onde Pessoa circulou, de “rua em rua” com Maiakóvski e Lílitchka, sentado a um café, acompanhando Baudelaire em meio à multidão, feito Poe, enquanto amanhece, ou entender, como Torquato, “que é legal saber que isso tudo pulsa, de alguma maneira” – e em outros tantos lugares, com todo o espectro de sortes e azares.
À minha maneira, pois estou onde quero estar na mesma medida em que estou onde devo estar – existe um tempo que é meu e eu faço com ele o que bem entender, inclusive transformá-lo em poesia ou simplesmente deixá-lo passar, sem ainda conseguir te dizer o que quero dizer, sem subterfúgios.
O que posso, no momento, é acreditar que é possível o reencantamento, muito além do olhar cartesiano, racionalista, objetivista da tradição dominante (sim, diferentes maneiras de dizer o mesmo!); o que minha mente permite, no agora em que me encontro, quando me deixo tomar pela primeiridade e observo o presente imediato, é não deixar de me encantar com as ruas da cidade, mesmo que minha circulação se faça pela memória, pelos micromundos que me fornecem identidade e sensações que só eu conheço.
Também não sei o que vem primeiro: o mundo ao meu redor ou as minhas percepções deste mundo; tendo a acreditar que a palavra que uso, que o gesto que se desprende do meu corpo, que o olhar que troco interage com as coisas e ajuda, ainda que minimamente, a transformar.
Cadáveres continuarão a ser empilhados em guerras infinitas e abjetas, a miséria moral, espiritual e social do homem não deixará de existir, manifestada em abusos sexuais, na exploração do capital, em maniqueísmos políticos, nas perdas de familiares e amigos pela negligência dos governantes... a lista é grande e grande também é a tristeza nestes dias.
Mas sei também que é possível encontrarmos razões para o reencantamento, para as possibilidades de um mundo diferente, em que o cuidado com todas as formas de seres vivos seja uma prioridade, que a atenção para a produção dos bens culturais seja, ao menos, proporcional àquela dada à produção industrial; que o livro seja acessível, que a música flua, que a poesia retorne às ruas e contribua para a magia da vida e do humano que ainda nos resta, encantado diante da fotografia de um imenso jardim de tulipas holandesas.

Imagem: aerial tulip fields netherlands

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