O fim que não chega

Noção de tempo se embaralha com cancelamentos

PARADA 1

Desde que o mundo é mundo, teóricos científicos, apocalípticos ou integrados, religiosos e leigos, ativos e passivos do mercado financeiro, prenunciam colapsos em diferentes graus de intensidade; se hoje fosse o “fim do mundo” alguém faria uma queixa reclamando da demora – caso estivesse cadastrado no sistema e tivesse tempo para aguardar a conexão.
A interpretação do filósofo Umberto Eco, desenvolvida em ensaios durante a década de 1960, reunidos no livro Apocalípticos e integrados, revigora-se a partir do acesso às ferramentas e estratégias que o homem desenvolveu para sua destruição, enquanto simulava um mundo melhor para todos.
Por instantes, pronome indefinido e plural “todos”, pela sua categorização, soa hiperbólico, pois, mais do que representar senso coletivo, justifica a incapacidade que temos em assumir responsabilidades individuais; afinal, se “todos” saem às ruas, porque não eu?
Nessa medida, explodem hiperbólicas previsões nas redes de comunicação – incertas, pela sua própria natureza –, e a que me chama a atenção é a que alerta para o risco de “90% de colapso do futuro da civilização” nas próximas décadas!
Uau!
O futuro orwelliano no tempo em que eu vivo, se apresenta de forma palatável, não menos ameaçador; talvez eu esteja vivendo os estertores do Longo Ciclo Maia (aquele povo que vivia na América Central, antes de ser dizimado, alguém lembra?); ou incluído na vivência do tempo circular, histórico e vivido, experienciado pelos indígenas do Parque do Xingu (os poucos que restaram e que mantêm a memória), ainda que seja mais uma página destruída pela ganância ignorante.
Modernos teleconsultores especializados em coaching lembram que todos os seres vivos estão interligados, que não existe nada isolado, que estamos todos “ligados” com o universo e o mundo das coisas – o que mostra que é preciso reiterar, de todas as formas, em qualquer ligação, o que os gregos já consideravam.
Musashi, o samurai, escreveu: “Existe o observar e existe o ver. O olhar da observação é forte. O olhar do ver é fraco.”

PARADA 2

Se havia uma perspectiva de um tempo mais construtivo e integrado, também se pode observar que a realidade é apocalíptica: basta percorrer as redes sociais ou as ruas da cidade – atendidas às recomendações – ou simplesmente olhar pela janela e ver, encolhida sob a marquisa, mais uma família que sobrevive ao inverno da Serra gaúcha enrolada em cobertores velhos e sujeita ao acolhimento dos passantes, que muitas vezes a torna invisível.
Pior que está não fica!, dizem os otimistas, mas o tempo que passa parece indicar o contrário ao acentuar as nossas misérias.
Se, por um lado, os cientistas avançam em suas pesquisas – inclusive na área de produção da energia –, por outro, há o sistemático desmonte das estruturas acadêmicas e o intenso ataque às possibilidades que a ciência oferece para salvar-nos do colapso anunciado: a estupidez grassa!
Os meios de comunicação de massa acentuam isso há anos, talvez não da melhor maneira: mas o que parece ser difícil de compreender (e aceitar), é que vivemos uma “sujeição à multidão do presente”, voltados a uma direção específica, mesmo que a meta não seja clara.
E seguimos, embalados por canções, como a de Zé Ramalho.

PARADA 3

O homem-sanduíche reincide portando a placa onde lemos “O fim está próximo”.
As sirenes de emergência (ou emergências) assustam o sono dos que ainda dormem tranquilos – ou dos mais de 70 milhões de brasileiros que sofrem de insônia e usam medicamentos para dormir (conforme a Associação Brasileira do Sono, levantamento feito entre 2011 e 2018).
Ou não.

PARADA 4

As estrelas constroem mundos e nós admiramos as estrelas, fazemos poesia para e com as estrelas; alguns, dizem, viram estrelas quando morrem, e mesmo quando elas caem, nós formulamos pedidos a elas.
Beleza!
Porém, ao contrário delas, contrariando as 300 gerações que vivem sob elas, destruímos o mundo sobre o qual caminhamos com gestos corporativos e exploratórios, que não cabem na compreensão que advogamos ter da beleza da imensidão.
Incorporamos comportamentos, mesmo sujeitos à multidão que somos; extremismos são confundidos com militâncias, e vozes se levantam para cancelar o debate sobre as diferenças, por exemplo, enquanto mergulhamos em uma “zona cinzenta” em que se equipara opressor e vítima (Primo Levi).
Assim como quando pensamos sobre a cidade: se ela é feia e cruel, como se ouve por aí, não se deve esquecer que existe uma identificação psicológica entre ela e seus habitantes.
Se o mundo deixou de ser belo e bom para se viver, também é latente a razão.
A influência emocional das formas e dos espaços é algo a ser observado e ajustado, culturalmente, filosoficamente, materialmente.
Para que “todos” possamos aproveitar melhor os espaços e as formas, e saibamos nos integrar para melhor conviver com os apocalípticos.

PARADA 5

Se hoje fosse o fim do mundo, ante tanta cautela e pessimismo, pelo menos seria um domingo de sol.

* Ilustração: da série Coleção Negra, da Editora Record

Comentários

  1. Quantas verdades. Publique algo e as faces se revelam entre o querer e o ódio. Quisera sair dessa realidade ultrajante e atingir um modo de abstrair tantas incongruências desse povo selvagem. Então, reflexão ou apontamento ? És tu selvagem , também?

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  2. Quantas verdades. Publique algo e as faces se revelam entre o querer e o ódio. Quisera sair dessa realidade ultrajante e atingir um modo de abstrair tantas incongruências desse povo selvagem. Então, reflexão ou apontamento ? És tu selvagem , também?

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