Na rua vestida de cinza

Sobre o mês que vem

Estação Primeira

Em setembro, reza a lenda e os climatologistas apontam, o índice de chuvas por aqui é acima da média.
Em setembro, espera-se pela primavera e pelas cores que irão retirar um pouco da palidez do inverno e dos tons de cinza que acentuam o concreto da cidade.
Setembro é um mês de suspensão – o ar fica diferente, assim como os cheiros, tal qual as pessoas, que parecem antecipar os dias mais quentes e o bem-estar que o desprendimento provocado pela liberdade dos movimentos do corpo, sem tantas camadas de lã para protegê-lo, proporciona.
Setembro tem um dia a menos que agosto e, quando se aproxima do fim, provoca estremecimentos imperceptíveis na pele e certo encantamento no espírito, como quando ouço Beto Guedes.
Setembro é um mês de expectativas, pois também é a antecâmara do meu inferno astral.
Mas é claro que isso pouco interessa.

Estação Segunda

O que interessa, porque é preciso, é lembrar que setembro também é feito de fatos para não serem esquecidos – para os dias ficarem mais alegres ou para ficarem ainda mais sombrios.
Em 1939, a Alemanha Nazista e a Eslováquia invadiram a Polônia e deram início à Segunda Guerra Mundial – o resto, todos deveriam saber; ainda: no mesmo mês e ano, o ditador alemão assinou uma ordem para iniciar a eutanásia sistemática de doentes mentais e deficientes; enquanto isso, no Brasil, a censura militar apreendia livros, embora no começo daquele mesmo século o governo houvesse criado o Departamento Nacional do Livro.
É num setembro que começa a circular o primeiro jornal no Brasil, é também o mês em que estréia O rei da vela, de Oswald de Andrade, com direção de José Celso Martinez – e tem início o movimento tropicalista.
Em setembro nasceram o músico Art Pepper e os escritores Edgar Rice Burroughs, nos Estados Unidos, Blaise Cendrars, na Suíça, e António Lobo Antunes, em Portugal, a pintora Tarsila do Amaral, a cantora Leny Eversong, os poetas Álvares de Azevedo, Bráulio Tavares, Ferreira Gullar, Arnaldo Antunes e também o educador Paulo Freire, no Brasil
Setembro tem as cores das flores e as cores simbólicas – verde para conscientizar sobre a doação de órgãos e prevenção ao câncer de intestino; vermelha para a conscientização sobre a prevenção das doenças cardiovasculares; amarela, para prevenir o suicídio.
Em setembro também morreu gente; morreram papas, gurus, políticos e magistrados.
E, para não esquecer, neste setembro que se inicia, em 2020, já morreram mais de 120 mil brasileiros, uma taxa de 557 habitantes por milhão; e a taxa de homicídios da última década, num crescendo, indica que são mortas mais pessoas negras do que não negras; e a vida segue pelas avenidas e na periferia, a vida segue, trôpega feito saída de um baile de carnaval, dolorida, como sobrevivente de uma sessão de tortura física ou psicológica.

Estação Terceira

Querer buscar nas ruas explicações para a angústia ou para a melancolia e encontrar indiferença e solidão; é desalentador buscar nas ruas exemplos de solidariedade e preocupação com um dos piores momentos que vivemos há pelo menos 50 anos e encontrar moradias improvisadas sob as marquises, nas calçadas esquecidas e geladas de um inverno que amanhece – como engana a promessa de um futuro!
O mundo natural, como o conhecíamos, era constituído pela combinação dos quatro elementos: ar, água, terra e fogo; o mundo em que vivemos, ganhou outro elemento: a informação, uma onda que, reconhecido seu valor, procuramos controlá-la pelo menos desde a década de 1950.
Quando era possível caminhar despreocupadamente pelas ruas – e admito ser difícil contextualizar o tempo na memória –, obtínhamos o bastante para a imaginação compor novas histórias, afetos e encontros.
Resguardados, assistimos pelas janelas as mesmas ruas com sentimentos confusos: apesar dos riscos e da alta taxa de mortalidade, circulam joggers, ciclistas, bebês em seus carrinhos, crianças extraviadas das mãos das mães, idosos a querer repor energias sob o pálido sol que encontra espaço entre as nuvens e aquece levemente o asfalto no estertor do inverno.
Dentro de casa, temos acesso a tudo, ou a quase tudo; não entra pela janela a empatia, não entra a dor de quem perdeu alguém, não entra a compaixão e outras tantas subjetividades que dependem do trânsito da humanidade.
Mas não dá para dizer que não sabemos das coisas que acontecem para além da nossa clausura física – mas sabemos que, assim como os quatro elementos do mundo natural, também o quinto elemento está contaminado: o volume de informações está próximo de um cataclisma, previsto, pelo que consta, no Eclesiastes 12:12: o mundo, também aquele que não conhecemos, está cheio de contradições e surpresas.
E as ruas, mesmo cheias, de folhas soltas, de lixo, de miséria, de sonhos e silêncios, continuam a inquirir.

Estação Quarta

E não existe a possibilidade de obter respostas homogêneas para as perguntas que a cidade enuncia.
Mesmo as “imagens públicas” são interpretadas de forma diferente, basta observar: a variedade de informações contidas nos objetos que estão sob nossos olhares possibilitam igual ou maior variedade de serventia – às vezes nos orientam, noutras, multiplicam nosso vagar ao léu.
E se as “imagens públicas”, com seu pragmatismo e facilidade de comunicação permitem que nos movamos pela cidade, a subjetividade intrínseca ao olhar oferece a possibilidade de ir além das questões básicas que se apresentam; por trás delas, podemos enxergar a violência disfarçada, a decadência inevitável, as aglomerações indevidas, mas também uma beleza que é negada na maioria das vezes.
É plausível nos acostumarmos com o trajeto e pensarmos, a partir do próprio Eclesiastes, que nada há de novo sob o sol; sequer sob o rugir das tempestades, como poetizou Maiakóvski (“E então, que quereis?).
Quem sabe por isso refaçamos o cotidiano, por mais enfadonho que ele se anuncie, com a urgência de recuperar o que havíamos desaprendido: a ficar sozinhos e em paz, mesmo distantes uns dos outros, mesmo quando estar junto ao outro significasse estar de saco cheio apenas por estar; ao mesmo tempo, aprender a ficar confinado com o outro, querendo um tempo para espairecer e não precisar falar.
Aproveitando-me das contradições de que somos feitos, abro mão temporariamente de minha preferência pela solidão e pelo silêncio, e uso a palavra para me lembrar que faço parte ativa desta cena, ainda que de forma parcial e fragmentária, e não só como observador, pois na medida em que interajo com os meus sentidos, contribuo para formar a imagem da cidade que ocupo ao lado de muitos outros.

Estação Quinta

Talvez porque seja domingo e esteja chuvoso; talvez porque seja domingo; talvez porque esteja chuvoso; talvez pelas incertezas que o minuto seguinte provoca, a mente acessa outras referências que até ontem não estavam presentes.
Em 1970, Alvin Toffler publicou Future Shock, traduzido para O Choque do Futuro; era um artigo, virou um livro; é dele a frase “a mudança não é simplesmente necessária para a vida – ela é a vida”.
Como tudo passou a ter mais velocidade, como as verdades passaram a ser rapidamente apropriadas, o exercício futurológico de Toffler foi rapidamente absorvido e transformou-se em discurso banal de mesa de bar – quando ainda havia leveza e longos debates existenciais em reuniões em mesas de bares.
A tecnologia da informação está ao alcance das digitais e ninguém mais se espanta, assim como os golpes eletrônicos não impressionam quase ninguém – aliás, além da burrice de algumas figuras públicas, o que mais impressiona?
As coisas mudam freneticamente, não só pelo tempo de existência e pela contemplação, mas pela avidez do hiperconsumismo – não há tempo para o devaneio.
A cidade não para, seja pela inércia, seja pelas necessidades criadas – mas o tempo faliu e, com a ruína do tempo, os sonhos deram lugar a pesadelos vividos a céu aberto, longe dos espaços oníricos e recompositores.
Por vezes, as horas parecem inúteis na maleabilidade do tempo, quando relógios e calendários se mostram inutensílios, em que o passado se torna próximo, o futuro inexistente e, entre eles, um presente que renuncia à perspectiva, como numa pintura cubista.
Como não abandonamos a poesia nem os poetas pelas ruas, saberemos, como Enzensberger, que “está na hora de louvar / com língua fogosa o garçom que escuta longamente / o monólogo do impotente”; enfim, “pomos de lado o jornal / e nos alegramos, encolhendo os ombros, assim / como se faz, quando a novela chega a seu final feliz, / quando a luz é acesa no cinema, e na rua / para de chover... então nos aguarda / por fim a primeira tragada de cigarro”.
Afinal, a “esfera que abrange tudo” é tão imperfeita como é o que pensamos e o que somos, e na simplicidade dos gestos, podemos, quem sabe, encontrar um minuto de sossego.
E pode ser que continue a chover em setembro; ou não; pode ser que as nuvens e a saudade das ruas, e as saudades tuas, despertem outros sentimentos enquanto aguardamos as boas novas.

Ilustração: pintura de Hasui Kawase (1883-1957)

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