Outras distâncias, outra cidade

Domingo é sempre um dia estranho

Sometimes I feel so happy
Sometimes I feel so sad
Sometimes I feel so happy
But mostly you just make me mad1

(“Pale Blue Eyes”,
Velvet Underground)


TÃO PERTO

Ao redor do planeta, algumas ruas se transformaram paisagens desérticas; a vida, como a conhecíamos, ganhou novos subterfúgios; em outras cidades, no entanto, ainda que golpeadas, as pessoas simulam danças silenciosas, esbarrões involuntários, em calçadas onde a vida flana e flerta com o fim das coisas.
A ordem do dia é cancelar o que for possível e, ao mesmo tempo, tudo adquire um caráter de urgência – estamos mais próximos de morrer do que queremos admitir, mas, o que se há de fazer?
Repetir modelos de comportamento não parece ser uma solução para transformar; repetir-se cansa, mas todas as descobertas foram feitas a partir da exaustão da prática, e não é diferente com o uso da palavra.
Escrever sempre o mesmo poema; pensar sempre no mesmo olhar; lembrar diariamente daquilo que se teima em esquecer; repito, agora, o que publiquei há pouco: no momento, quase não conseguimos realizar os mais simples desejos, o que obtemos são apenas explicações para a impossibilidade.
Mas, o que se há de fazer?

TÃO LONGE

A cidade como a conhecemos – num outro “agora” – não é a mais a mesma – em outro “agora”.
Num tempo que não existe mais, houve certa constância, pequenos acréscimos ao cotidiano de cada um; agora há um outro momento, de rupturas e de violações – nem mesmo as construções que modificam o skyline da cidade têm tempo para apenas existir, já que as finalidades imobiliárias são predeterminadas.
De repente, o quadrilátero central já está sufocado e outras vias precisam oferecer vazão para o fluxo e desacomodar o cidadão acostumado a ter “tudo tão perto”; em alguns centros urbanos, viaja-se embarcado nas ofertas de transporte e de uma vida feliz, viagem que nem todos desfrutam, já que a cidade, em si, verticaliza seu olhar, embora não seja apenas um olhar de cima para baixo, embora não seja um viver comum.
A cidade, como a conhecíamos, sempre irá caber no cartão-postal de um arquivo histórico e se acomodar nas lembranças; os que vieram antes contam com orgulho dos “bons tempos” e às vezes não entendem a pressa e as transformações; quem chegou agora, maravilha-se: prédios imponentes, arquitetura de vidro e plástico e ferro; funcionalidade, segurança e tecnologia.
Os espaços públicos simbólicos – parques, praças, museus, centros de convivência, áreas verdes – são submetidos ao crivo dos que habitam e têm poder/dinheiro e estão ali, à espera de quem procura um lugar para desafogar a angústia da semana, tendo ou não poder/dinheiro.

TÃO PERTO

Sei que não trago nada de novo quando escrevo que a angústia está potencializada.
Mas gostaria de escrever uma poesia que resgatasse um estado de espírito diferente do cotidiano que construímos, uma crônica que não remetesse à constatação de que, de repente, as fissuras ficaram maiores.
Faz tempo que aceleramos o ritmo de nossas vidas, faz tempo que somos forçados a nos movimentar em direção a destinos que não são de todo desejados – e, ao chegar, perceber que a maioria deles nos levou a lugar nenhum.
Por outro lado, dolorosamente, verifica-se que a vida que era oferecida, voltada rigidamente para a produção, e pela maioria escolhida, por necessidade ou por cobiça, já não dava mais.
Há que se acreditar que as políticas públicas irão mudar, que os gestores irão atentar para as condições de vida de seus eleitores (e dos não eleitores também), embora se saiba que dificilmente as mudanças serão do ponto de vista moral, o que, teoricamente, desarma a premissa anterior: a sociedade parece ficar mais egoísta, agressiva e desconfiada, logo, escolhe aqueles que irão procurar manter as coisas como estão e se manterá ocupada em preservar os espaços que conseguiu até então.

TÃO LONGE

O tempo urbano também está submetido ao tempo das mudanças climáticas, lembram os urbanistas; alguns poderão interpretar como desígnios divinos.
E as mudanças climáticas também são decorrentes do acúmulo do capital, do esgotamento e da apropriação criminosa das reservas naturais.
Uma vez, cidades fortificadas tinham ruas estreitas e todos sabiam por onde se locomover; as cidades modernas prezam as largas avenidas as rotatórias as elevadas.
E as pessoas que nelas habitam, antes e agora, não sabem bem onde pisam, e nem todo caminho tem cuidados paisagísticos ou recebem cuidados sanitários.
As ruas alagam, o asfalto esquenta, as árvores sofrem com o descaso, os lixões se acumulam e, em 2019, o número de “miseráveis” no Brasil ultrapassou os 13 milhões, segundo as estatísticas (econômicas, é claro).
O mundo tornou-se estranho; entre tantos estranhamentos, não é mais aquele que comporta nossa existência.
O passado já não serve mais como única referência – e, por incrível que possa parecer, as condições empíricas do presente permitem pensar um futuro melhor para todos; uma nova utopia, quem sabe.
De imediato, porém, é preciso mitigar a dor provocada pelas doenças, pela miséria (pela fome), pelos preconceitos, pelo ódio compartilhado, pela fraqueza do estado emocional diante da única coisa certa em nossas vidas.

TÃO PERTO

“Um homem com uma dor / é muito mais elegante”, canta Itamar, que ouço quando termina o disco do Lou Reed.
E brevemente penso: querer ser feliz o tempo todo se tornou doentio, ainda mais quando a felicidade depende de fatores e valores que vêm “de fora”.
A solidão imposta não é uma coisa boa, mas é o que temos para o momento; ela deveria, enquanto escolha, possibilitar que os laços estabelecidos fossem revistos, para que cada um pudesse se libertar deles e criar novas relações, e não angustiar e afastar-nos dos outros.
Os muros vinham caindo pelo menos desde o século XVII, mas eis que a contemporaneidade possibilitou o acesso a novas fortificações – prédios com alturas estratosféricas, sistemas de vigilância hiperseguros, neuroses consolidadas, mais desequilíbrio econômico e, agora, um distanciamento social que mascara as necessidades humanas de contato.
A sensação de estar desligado dos outros é forte, tanto quanto a sensação da morte e o fato de não podermos mais nos programar, de não vivermos mais a ilusão de termos nossas vidas em nossas mãos.
As redes globais nos colocam no mundo, mas nós não estamos mais no mundo – sequer vamos tranquilos ao supermercado, não caminhamos pela cidade despreocupadamente e nem sabemos se em um dia próximo teremos esta oportunidade.
Pelas redes globais, podemos assistir movimentos que fortalecem a ideia de solidariedade, de amor e paz, mas são incessantes e volumosas as postagens que reverberam ódio, ressentimento e desprezo pela vida humana – e aí, como curtir a poesia de Leminski na voz de Itamar?

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante2

(Paulo Leminski)



* Cristiana Couceiro é ilustradora e designer, residente em Lisboa, Portugal. https://cortex.persona.co/t/original/i/69392c4997e82fb2d14077b1ae2ac784d4e50e2000dcab1131dd61830a83a7a5/new-yorker_Shirley-Jackson_final-01_1.jpg


1 “Às vezes eu me sinto tão feliz / Às vezes eu me sinto tão triste / Às vezes eu me sinto tão feliz / Mas na maioria das vezes você só me deixa louco.”
2 Poema sem título, publicado em La vie em close, 1991; musicado e gravado por Itamar Assumpção em Petrobrás, acompanhado por Zélia Duncan (1999).

Comentários

  1. Esse agora de sua crônica é tão real quanto o outro agora. Gostei muito.Diz muito . Significado. Parabéns Dinarte!

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